Por Itana Alencar, G1 BA


Moraes Moreira canta Novos Baianos em São Paulo — Foto: Marcelo Brandt / G1

Assim como mancha de dendê não sai, Moraes Moreira é um ídolo que não deixará de ser referência cultural na Bahia. Nesta terça-feira (16), dia em que seria comemorado o feriado de carnaval, é justo que se homenageie o primeiro cantor de trio elétrico.

Antônio Carlos Moraes Pires nasceu em Ituaçu, cresceu em Salvador e viveu no Rio de Janeiro. Para além dos muros imaginários da cultura que cercam o Nordeste, o pombo-correio voou, explodiu no mundo inteiro e escreveu centenas de músicas. Uma delas vai ser capaz de dizer o que você sente agora.

Mas antes de avançar na canção, vamos "começar do começo", em bom baianês. Moraes tinha o tino da música desde criança, quando começou a tocar sanfona nas festas de São João. Na adolescência, ele desenvolveu a habilidade para o violão.

No começo da juventude, lá pelos 19 anos, foi morar na capital baiana para estudar no Seminário de Música da Universidade Federal da Bahia. É nesse ponto em que ele conhece Tom Zé, Luiz Galvão e Paulinho Boca de Cantor.

Novos Baianos — Foto: Acervo Arquivo Nacional / Divulgação editora Agir

Se há o ditado que diz que "quem se junta com porcos, farelo come", aqui se aplica a lógica reversa e exalta esses grandes ídolos: quem se junta com estrela, talento multiplica. E assim nasceram os Novos Baianos, somados a irreverência de Baby do Brasil. Depois, Pepeu Gomes se juntou ao grupo.

Moraes tinha uma alma livre, rebelde. E há rebeldia maior que o amor? Entre se apaixonar pela música e pela vida, o grande artista teve três filhos: Davi, Maria Cecília e Ari. Convidamos então Davi para falar sobre o pai, muitas vezes usando o tempo verbal no presente.

"Ele significa tudo. Esses dias eu estava comentando com minha irmã, sobre a nossa sorte de ter um pai desse. Um pai incrível, maravilhoso. Um pai que sabe ser pai, que sabe confortar um filho, que sabe amparar, cuidar de um filho, estar presente. Quando a gente olhava para o lado, ele estava sempre ali. Uma pessoa muito doce, que dava muitos bons exemplos que a gente carregou para nossa vida".

"Exemplo de saber como chegar nos lugares, saber como tratar as pessoas de igual para igual. Fazer amigos por onde passa".

O músico Moraes Moreira durante apresentação com Pepeu Gomes (esq.) no festival Rock in Rio II, realizado no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1991 — Foto: Ana Carolina Fernandes/Estadão Conteúdo/Arquivo

Como artista, o Brasil viu em Moraes uma figura importante, carismática, talentosa e de personalidade inconfundível – como o próprio Davi vai descrever mais à frente. Em casa, além de tudo isso, a família tinha um exemplo próximo e real para se espelhar.

"Ele é um cara que sempre procurou devolver às árvores das quais ele teve a energia e toda a influência e formação. Ele jamais foi um artista extrativista, ao contrário disso. Ele devolvia tudo o que a vida ia dando para ele, através das histórias que ele construiu, dos encontros que ele teve, através de letras, crônicas lindíssimas contando todos esses encontros com os parceiros, com todo esse pessoal que se tornou uma família para ele também".

"Um artista gigante, um pai gigante, um ser humano gigante. Muito orgulho disso"

Ao ver o pai se tornar uma figura pública pela grandeza artística, o orgulho da família Moraes cresceu ainda mais. Davi conta que não causou estranheza ter um pai famoso, já que sentia nos fãs o mesmo carinho que havia dentro de casa.

Foto clássica dos Novos Baianos que estampou a capa do álbum 'Acabou Chorare' — Foto: Divulgação

"A gente via que ele era muito amado, muito respeitado pela sua arte, pela sua cultura, pelas suas vitórias que não foram fáceis, que foram à base de muito sacrifício, muito esforço e muita fé. A gente viu ascensão mesmo, ele saindo ali do nada, indo para os Novos Baianos, cantando na carreira solo. Um começo muito difícil e depois se tornou um dos grandes artistas do Brasil, um dos maiores".

"Era um trabalhador nato, que estava todo dia escrevendo, tocando, pensando em um projeto novo, pensando em uma ideia nova, incansável".

Pepeu Gomes e Moraes Moreira nas gravações da novela 'Tieta' (1989), da TV Globo — Foto: Acervo TV Globo

E já que voltamos a falar de Novos Baianos, Davi também contou o que se lembra e o que viu, já que nasceu quase no primeiro final da banda.

"Eu vivenciei muito encontros maravilhosos dele com Pepeu, que é meu mestre também da guitarra. Dele com Paulinho [Boca de Cantor], dele com a Baby [do Brasil] e pude rever e vê-los numa volta com o disco Infinito Circular, que foi uma volta triunfal deles, gravaram um disco lindo. É uma banda que tem uma química das mais fortes que eu já vi, porque ali tinha uma cantora de uma personalidade inconfundível, tinha um violão e um cantor de uma personalidade inconfundível, tinha outro cantor de muita personalidade, tinha um guitarrista que é o maior guitarrista da história do Brasil".

"Como diz o Tom Zé: 'A música tem muitos mistérios', e esse encontro aí estava predestinado já de acontecer, e ser um dos encontros mais importantes da história da música brasileira".

Fazendo história no trio elétrico

Tradicional encontro dos trios na Praça Castro Alves tem Moraes Moreira eo cantor Saulo — Foto: Divulgação/Max Haack/Saltur

Já em carreira solo, um ano após ter saído do grupo, Moraes Moreira ganhou um título que não será de mais ninguém: foi o primeiro cantor de trio elétrico. Em 1976 ele se juntou com uma outra galera: Dodô e Osmar.

Naquela época, ainda era o precursor da guitarra baiana que dominava o carnaval: o pau elétrico. Com a melodia de Osmar Macêdo, o brilhante Moraes construiu a letra de "Pombo-correio", e ali nasceu também a primeira música cantada em trio.

"O trio elétrico, como todos sabem, só era música instrumental, ninguém cantava nada. E quando ele conheceu Armandinho e Osmar Macêdo, a família Dodô e Osmar, ele começou a perceber que o Osmar, pai do Armandinho, era um grande melodista. Fazia músicas instrumentais lindíssimas e começou a ter essa sacada de colocar letras nessas músicas. As músicas rapidamente se tornaram sucesso e vieram os discos dele junto com o trio, que são discos antológicos da música brasileira, que eram tão importantes quanto os discos dos Novos Baianos, por exemplo".

Imagem do último show de Moraes Moreira, em março, no Rio — Foto: Evandro Teixeira/ Arquivo pessoal

E falando novamente nos Novos Baianos, o pombo-correio desencontrou, não perdeu nenhum segundo, voou e trouxe notícia boa, bem assim como previa a música cantada por Moraes. E foi em 1997 que o grupo se reuniu novamente e lançou o Infinito Circular, disco citado por Davi.

"E aí ele saiu voando pelas asas de um pombo-correio e se tornou o gigante que ele é até hoje, atravessando décadas, gerações, com a música dele sempre atual, sempre cantada pelo Brasil todo. Então eu considero assim, é muito mais do que ser apenas o primeiro cantor de trio elétrico. Se ele fosse só o primeiro cantor de trio elétrico, ele já seria um feito incrível. Mas é muito mais que isso ainda. É realmente um cara que tinha uma visão à frente do seu tempo, tinha uma percepção das coisas antecipada".

Há que se fazer um adendo, porque anos antes de Infinito Circular, Moraes lançou – junto com os Novos Baianos – Acabou Chorare, que é considerado até hoje o maior álbum brasileiro de todos os tempos, pela revista Rolling Stone Brasil.

Davi Moraes e Moraes Moreira tocam durante programa Som Brasil em 2009 — Foto: TV Globo / Zé Paulo Cardeal

"Eles passavam a noite tocando. Aprenderam demais aquele jeito de tocar, os acordes, a forma de cantar suave também e cantar pesado na parte do rock, e marcou muito a união, o fim desse purismo, dessa briga que existiu durante um tempo, de que guitarra elétrica era um instrumento americano, que samba não pode misturar com rock. Eles abriram portas, quebraram barreiras para todas as gerações que vieram depois. Como ele mesmo dizia: 'os caras mais malucos, na vista deles ficavam caretas'. Mas não eram caretas de droga, nem nada disso. Era careta de visão de vida mesmo”.

Um dos vanguardistas do carnaval de rua na Bahia, Moraes também se tornou um grande crítico ao modelo atual, que está em processo de dissolução. Ora, o carnaval nasceu para ser uma festa popular. Tomada por grandes empresários, vieram também as cordas que impuseram o elitismo à folia.

"Esse formato de cordas veio através da engrenagem dos artistas na geração depois dele. Aí a Bahia cresceu muito como turismo, como indústria musical mesmo. Tudo o que ele falava lá nos anos 80 [1980], ele profetizou, porque é o que está acontecendo agora. Agora [quase] não existe mais abadá, ninguém vende mais aquele absurdo de preço, que o cara paga seis mil reais para pular carnaval, enfim. E os que não pagam são as famílias baianas que ficam sendo oprimidas pela corda, ficam sendo empurradas pelos cordeiros rudes, truculentos".

O músico Moraes Moreira durante apresentação com Pepeu Gomes no festival Rock in Rio II, realizado no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1991 — Foto: Ana Carolina Fernandes/Estadão Conteúdo/Arquivo

Davi lembra ainda de episódios em que perguntaram a Moraes sobre o que ele achava dessa decaída do carnaval de abadás.

"De vez em quando vinha um repórter desavisado perguntar para o meu pai o que ele estava achando sobre esse movimento de baixar as cordas. Aí ele dizia: 'Não estou achando nada, eu nunca levantei corda, sempre toquei para o povo'. E assim como ele, Margareth Menezes, Carlinhos Brown e outros poucos. Porque a maioria tocava o mesmo repertório, com a mesma roupa, com o mesmo dançarino, com a mesma estética, com o mesmo tudo, para agradar os turistas e o povo baiano ficando de fora da festa".

Depois de um novo fim dos Novos Baianos em 1999, o grupo voltou a se reunir em 2015, quando saíram com a turnê "Acabou Chorare: os Novos Baianos se encontram", que começou em Salvador, claro.

Novos Baianos em turnê 'Acabou Chorare: os Novos Baianos se encontram' — Foto: Mila Maluhy/ Divulgação

Moraes foi um mestre que homenageou outros mestres. Entre os livros que lançou, em 2017, "Poeta Não Tem Idade", homenageou grandes nomes como Luiz Gonzaga, Machado de Assis e Gilberto Gil.

"Meu pai escreveu vários livros, são quatro ou cinco. Ele sempre adorou escrever, escrevia diariamente sempre alguma coisa. Menor ou maior, sempre escrevia diariamente. Sempre tocava violão diariamente, e era um cara que aprendeu a fazer as letras dele, a compor, a escrever de uma forma incrível. Aprendeu praticando mesmo e com essa convivência com os parceiros. Tem coisas que ele diz de um jeito que só ele poderia dizer mesmo, em músicas".

E falando em mestre, Davi – que literalmente bebeu da mesma água que Moraes – também tinha projetos artísticos com o pai.

"O nosso projeto juntos, de criar um trabalho, um show juntos, é um projeto de vida. A gente fez a nossa vida inteira. Eu ia fazendo as turnês, ia para fora, mas volta e meia a gente se reencontrava e retomava a nossa parceria. No trio elétrico, no show em duo, e tudo isso. Fomos parceiros musicais e companheiros de estrada até os últimos dias, até o último momento mesmo".

"Eu fico muito feliz de ter cumprido isso com ele, porque eu sinto que é uma forma de retribuir e dar para ele tudo o que ele pôde me proporcionar na música. Tudo o que ele pôde me dar, me mostrando os caminhos". 

Em abril do ano passado, aos 72 anos, Moraes Moreira deixou saudosos fãs de um imenso legado musical, artístico e cultural. O gênio sofreu um infarto agudo do miocárdio enquanto dormia. Mas como dizem os antigos, nos interiores da Bahia: Moraes "não morreu, virou semente".

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Moraes Moreira e Davi Moraes — Foto: Paula Cavalcante/ G1

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