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Estaria o café seguindo os rumos do cacau e da baunilha?
Com preços em alta e avanço do café sintético, especialistas veem riscos do grão seguir o caminho da baunilha: popular no nome, raro na origem
Nos últimos dias, estive conversando com alguns especialistas no mercado de café e, invariavelmente, veio ao centro da discussão a situação do preço e da produção da próxima safra.
Um dos pontos interessantes dessas discussões foi a comparação de que o futuro do café tende a ser igual ao do chocolate ou da baunilha, já que os preços altos do café poderiam, em tese, inviabilizar o mercado do café biológico, assim como os preços altos impossibilitaram o acesso de grande parte dos consumidores ao cacau e à baunilha natural.
O resultado disso é que uma quantidade considerável de produtos comercializados hoje levam apenas produtos sintéticos, que substituem o cacau e a baunilha. Na prateleira, o resultado é uma série de produtos “sabor chocolate’’ ou “aroma baunilha’’. Como o caso da baunilha é ainda mais extremo e crítico do que o do cacau, nesta coluna me concentrarei apenas nele. O cacau fica para a próxima.
Podemos dizer que o futuro do cafezinho está nos laboratórios? Em uma busca simples na internet, podemos ver iniciativas animadoras para a produção de café sintético e agentes do mercado ansiosos para abocanhar uma parte do valor da cadeia de café que seria destinada aos produtores.
Mas ocorre que o café não é simplesmente uma bebida. Menos ainda apenas uma substância psicoativa capaz de levar cafeína ao corpo e despertá-lo. Estima-se hoje que uma porcentagem mínima da baunilha consumida seja, de fato, biologicamente baunilha. As estimativas disponíveis de divisão do mercado alegam que algo entre 90% e 99% do mercado de baunilha seja dominado por algum tipo de ingrediente feito em laboratório que contém vanilina, um produto sintético derivado da orquídea que produz baunilha.
Até o século XVII, a baunilha era apenas um aditivo consumido pelos astecas na América Central. Em algum momento do final do século XVIII e início do século XIX, uma invenção dos próprios indígenas, chamada chocolatl, começou a se expandir pela Europa. E os aditivos usados na preparação deste passaram a ser testados separadamente. Logo, a baunilha deixou de ser um exótico complemento indígena de uma bebida rústica para acompanhar não só a bebida azteca como outras receitas da alta confeitaria europeia. Foi assim que começou o sucesso do chocolate e da baunilha.
O primeiro problema em termos de produção persiste até hoje: apenas uma abelha é capaz de polinizar a orquídea responsável pelos grãos de baunilha. Mesmo três séculos depois, ainda não foi possível replicar este processo de polinização – esta etapa da produção é executada à mão pelos produtores em outros continentes.
Hoje em dia, além do México, produtor original, Madagascar, Índia e Indonésia dominam o mercado produtor de baunilha. Esta limitação fez, portanto, o preço da baunilha ser alto desde o início, afetando o acesso aos grãos originais a partir dos primeiros momentos de consumo.
E, de lá pra cá, a descoberta da vanilina e da sua produção em laboratório apenas democratizou o acesso a algo sintético. Portanto, seria o caminho inverso ao que o mercado do café estaria vivendo nos dias atuais, ou seja, um produto altamente popular nas mais diversas classes sociais da Europa e dos Estados Unidos caminha para ser, cada vez mais, exclusivo e restrito.
Mas isso seria apenas o início. Pois as diferenças no preço, no consumo e na produção são imensas e não apenas restritas à história. Repare que a baunilha, desde o início, sempre foi um aditivo, nunca o ator principal de algo. Basta a pergunta: quantas vezes você já viu os grãos de baunilha? Quantas vezes você convidou ou foi convidado para consumir baunilha ou, especificamente, um produto com baunilha?
Além disso, ao contrário do café, o consumo da baunilha esteve muito mais restrito ao território de produção e de consumo. Logicamente, quanto menos pessoas estão implicadas ou em contato com o produto original, menor é a capacidade dos indivíduos de distinguirem as diferenças e de valorizarem o produto que vem diretamente do pé.
Enquanto a exportação de baunilha sempre foi monopólio de menos de dez países produtores, o café contou com exportações em três continentes diferentes, em algumas dezenas de nações. Mas a dispersão geográfica ocorre não só em relação à produção, como, também, ao perfil do consumidor.
Sabendo que o café carrega em si várias ideias de valores em relação ao estilo de vida, é natural que o consumo de café aumente em países onde, antes, não se consumia café e cujas economia e cultura não estivessem tão ligadas às economias consumidoras de café tradicionais.
Porém, este cenário está mudando rapidamente desde os anos 1990. Na economia, temos o conceito de integração econômica, que é baseado em comércio, investimento estrangeiro direto e fluxo de capitais e pessoas entre dois países. De acordo com todos estes indicadores, os países denominados consumidores emergentes de café, que contam com grande população e que estão localizados no sul e sudeste da Ásia, aumentaram a sua integração econômica com as economias ocidentais e tradicionais consumidoras de café.
Muita gente está começando a tomar café agora. Logo, um consumidor recente e com baixo poder aquisitivo estaria mais predisposto a consumir café sintético, certo? Depende, pois além de o sul e o sudeste da Ásia serem consumidores emergentes, eles também são produtores de café, o que reduz o custo logístico e acaba gerando um contato direto com os produtores, as regiões de origem e o grão em si.
Existem mais diferenças do que semelhanças entre o café e a baunilha. Se por um lado, as poucas semelhanças são importantes e não podem ser negligenciadas, por outro, o café chegou a um patamar de preços altos até para o consumidor de classe média brasileira, o que facilitaria a aparição dos sintéticos. Ao que tudo indica, esse patamar não está tão alto para o consumidor médio dos mercados de países ricos, como não está tão alto para os consumidores muito ricos de mercados emergentes populosos.
Apesar da grande empolgação e do amplo incentivo ao café sintético, me pergunto por que o mercado não investe nos próprios produtores de café? Uma das empresas líderes do mercado de café sintético se vangloria de ser altamente sustentável, sem dar provas desta reivindicação. Ao investir em startups de países ricos e se queixar do tempo necessário que os produtores necessitam para uma produção sustentável, o mercado faz mal a si mesmo e ao planeta.
Gustavo Magalhães Paiva é formado em relações internacionais pela Universidade de Genebra e é mestre em economia agroalimentar. Atualmente, é consultor das Nações Unidas para o café.