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'O coelho branco', de Irka Barrios

Leia o conto que ficou em segundo lugar no concurso Brasil em Prosa, promovido pelo GLOBO e pela Amazon em parceria com a Samsung
Bibiana Simionatto, a Irka Barrios é uma das autoras vencedoras do concurso Brasil em Prosa Foto: Divulgação
Bibiana Simionatto, a Irka Barrios é uma das autoras vencedoras do concurso Brasil em Prosa Foto: Divulgação

Corri para casa assim que vi a tela da máquina fotográfica. Eu procurava, há um bom tempo, uma desculpa para me despedir das pessoas. Aquela festa já não me divertia. Desci as escadarias da imponente entrada do teatro sem ligar para o fato de a bainha de meu melhor vestido arrastar pelo chão. Na calçada, acenei para o táxi, que encostou ferindo meus ouvidos com o ruído de freada brusca.

Ofegante, expliquei o endereço. O motorista me encarou com suas sobrancelhas grossas, feito taturanas. Fumava um cigarro aromático.

Aceleramos. Mas o trânsito ocupado do início da noite atrapalhou nossos planos.

A imagem, revelada na antiga Polaroid, ia e vinha na minha cabeça. Era eu. Com o mesmo vestido azul claro, que agora exibia a bainha suja. E com a mesma pose: a cabeça levemente inclinada para o lado, como sou treinada a fazer quando planejo me sair bem. O olhar fixo num ponto distante da lente, o meio sorriso e o ar perdido: tudo igual à foto que eu acabara de visualizar na tela do fotógrafo da festa. A outra, tirada há uns dez ou doze anos, encontrei na manhã anterior, misturada com papéis esquecidos no baú de lembranças de meu quarto.

Lá fora os carros se arrastavam. Formavam barricadas, como se pretendessem impedir a revelação. O tempo, como que em solidariedade aos carros, também se arrastava. Num dado momento tive a impressão que os números do taxímetro seguiam uma ordem decrescente. Os ponteiros do relógio de pulso do motorista também passaram a seguir um caminho anti-horário, os pedestres caminhavam em marcha ré. Cocei a cabeça, franzi o nariz e apertei com força o tecido do vestido. Procurava a explicação, a origem, o lapso de tempo, entre uma foto e outra, onde me perdi. E uma frase, em forma de aviso, se repetia, embaralhando meus pensamentos: “siga o coelho branco, siga o coelho branco, siga o coelho...”

O táxi estacionou e joguei três notas de dez na mão do motorista.

— Não se atrase mais, ele disse soltando uma baforada de fumaça que transmutou sua fisionomia.

Desci sem esperar o troco.

Com a chave na mão, em posição de encaixe na fechadura, abri a porta de ferro da entrada do prédio. Mais escadarias à frente. Dois lances de degraus que subiam em caracol. Lá em cima, no alto do saguão do edifício que no século passado foi um ambiente charmoso, somente uma estrela brilhava. A noite se escondia por trás dos vitrais empoeirados.

Abri as fivelas dos sapatos e corri com um em cada mão. Quase em casa, pensei. Na primeira curva da escada a seda da saia prendeu na armação de ferro do corrimão. Ouvi o barulho inconfundível do rasgo. Era meu vestido favorito, mas agora não havia tempo para lamentar.

A foto, precisava encontrar a foto!

Entrei no quarto e a avistei de longe, na mesa de cabeceira. Sobre a cama, o coelho branco de pelúcia com as orelhas caídas e o pelo encardido de esperar.

Segurei a foto. Ainda era eu. Só que não era mais eu. No canto inferior, via-se com perfeição o rasgo no tecido, mostrando parte de minha perna esquerda. E no verso da Polaroid a inscrição, numa letra bem conhecida: “É tarde! É muito tarde!”

Irka Barrios (pseudônimo de Bibiana Simionatto) é dentista no município de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre (RS).