O texto apresenta o contexto do teatro de Machado de Assis, discutindo que:
1) A maior parte dos estudos sobre a obra de Machado se concentra em seus romances e contos, enquanto seu teatro recebeu menos atenção;
2) Machado se envolveu intensamente com o teatro na década de 1860, escrevendo comédias curtas e participando de debates teatrais da época;
3) O autor analisa o panorama social, literário e teatral da época para compreender as peças de Machado, como a disputa entre dois teatros
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2) A caricatura começou como uma forma de imitação e paródia, mas evoluiu para uma arte capaz de criticar costumes e expor verdades sobre a sociedade.
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Pierre Louis Chardin chega a Lisboa há 3 anos a convite do Marquês de Pombal para trabalhar na corte real. No seu diário descreve a cidade, notando as áreas mais pobres e desordenadas, contrastando com a zona ribeirinha próspera. O Marquês explica que Lisboa precisa de reformas urbanísticas para melhorar as condições de vida dos habitantes.
Pierre Louis Chardin chega a Lisboa há 3 anos a convite do Marquês de Pombal para trabalhar na corte real. No seu diário descreve a cidade, com a Baixa medieval entre o Terreiro do Paço e o Rossio, e a expansão para oeste ao longo do rio Tejo. O Marquês reconhece que Lisboa precisa de modernizar-se, seguindo os princípios urbanísticos romanos de planeamento e infraestruturas.
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3. Nilton de Paiva Pinto
TEATRO DE MACHADO DE ASSIS
Altermativa para a Dramaturgia Brasileira
4. 23-172609 CDD-869.9
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Pinto, Nilton de Paiva
Teatro de Machado de Assis : alternativa para a
dramaturgia brasileira / Nilton de Paiva Pinto. --
Contagem, MG : Ed. do Autor, 2023.
Bibliografia.
ISBN 978-65-00-80708-0
1. Assis, Machado de, 1839-1908 2. Literatura
brasileira 3. Teatro brasileiro I. Título.
Índices para catálogo sistemático:
1. Assis, Machado de : Literatura brasileira 869.9
Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253
Revisor: José Américo Miranda
Prefácio: João Roberto Faria
Projeto Gráfico, Diagramação e Capa: Lucas Fernando Diniz
Impressão: Companhia da Cor Studio Gráfico
5. Dedico este trabalho à memória do professor e amigo Ítalo Mudado:
A thing of beauty is a joy for ever.
[Algo belo é uma alegria para sempre]
(John Keats)
7. SUMÁRIO
O COMEDIÓGRAFO MACHADO DE ASSIS................................09
João Roberto Faria
Introdução
O teatro machadiano e seu contexto......................................13
Capítulo I
Hoje imitador, amanhã criador
I. 1. História do texto...................................................................................43
I. 2. O original e a imitação.........................................................................47
I. 3. O autor e o adaptador: duas linguagens...........................................61
I. 4. Cena última..........................................................................................71
Capítulo II
No princípio era o verbo
II. 1. História do texto...................................................................................81
II.2.Antes do palco a leitura: a palavra chamada ao proscênio...........87
II.3.Nopalco:a porta de entrada.............................................................107
II.4.Nopalco:umobjetoemdestaque.....................................................135
8. Capítulo III
O desfile dos bajuladores
III. 1. História do texto...............................................................................163
III. 2. Quase ministro.................................................................................165
Capítulo IV
Deuses e homens
IV. 1. História do texto.............................................................................195
IV. 2. Palavras do autor.............................................................................199
IV. 3. Deuses entre homens......................................................................209
Capítulo V
A poesia: “Uma ode de Anacreonte”
V. 1. História do texto................................................................................237
V. 2. Antônio Feliciano de Castilho e “Uma ode de Anacreonte”...241
V. 3. “Uma ode de Anacreonte”: dedicatória e nota ...........................243
V. 4. “Uma ode de Anacreonte”: o texto ..............................................247
Conclusão.................................................................................................263
Referências.............................................................................................267
9. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 9
O COMEDIÓGRAFO
MACHADO DE ASSIS
O leitor tem em mãos um livro que o fará entrar em contato
com uma faceta pouco conhecida do grande escritor Machado de
Assis: a do comediógrafo. Nascido em 1839, o autor de romances e
contos geniais dedicou-se intensamente ao teatro em sua juventude
literária, na década de 1860, participando dos debates do tempo,
atuando no jornalismo como crítico teatral, traduzindo peças
francesas e exercendo inclusive a função de censor, como membro
do Conservatório Dramático Brasileiro. Devido ao estímulo do
meio, acabou por escrever comédias curtas, em um ato, que foram
representadas tanto por artistas profissionais quanto por amadores,
em saraus literários.
Nilton de Paiva Pinto debruçou-se sobre essa produção do
jovem escritor para compreendê-la e explicá-la em sua singularidade.
O primeiro passo foi colocar em evidência o panorama social,
literário, teatral e político que viu nascer a “imitação” Hoje Avental,
Amanhã Luva e as comédias Desencantos, O Caminho da Porta,
O Protocolo, Quase Ministro, Os Deuses de Casaca e Uma Ode a
Anacreonte. Machado escreveu essas peças teatrais numa década em
que o país vinha se modificando bastante em função da interrupção
do tráfico de africanos, em 1850, com consequências benéficas para as
cidades, que ganharam investimentos significativos em vários setores
da economia. Ao mesmo tempo, o surgimento de uma primeira
burguesia, formada por advogados, médicos, engenheiros, jornalistas,
negociantes e comerciantes proporcionou o avanço das ideias e valores
10. 10 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
liberais, a despeito da hegemonia escravista. No terreno teatral,
Machado presenciou a disputa entre o Teatro São Pedro de Alcântara
e o Teatro Ginásio Dramático, o primeiro ligado ao romantismo e
dirigido pelo grande ator João Caetano, cujo repertório era composto
principalmente por dramas, tragédias neoclássicas e melodramas. Já
o segundo, sob a liderança do empresário Joaquim Heleodoro Gomes
dos Santos, introduziu o público do Rio de Janeiro à novidade que
vinha da França: peças de cunho realista, com feição moralizadora,
nas quais eram enaltecidas as virtudes burguesas do trabalho, do
casamento e da família. O que resumo aqui em poucas linhas é tratado
com vagar por Nilton, permitindo ao leitor compreender um momento
decisivo da história do teatro brasileiro, marcado pelo envolvimento
dos nossos principais escritores com a arte cênica.
Traçado o pano de fundo, o estudo se volta para a análise
de cada uma das peças teatrais de Machado. Importa ressaltar aqui
a metodologia empregada pelo autor deste livro, que o torna uma
contribuição inestimável para o conhecimento da obra do nosso
maior escritor. Nilton se debruça sobre a forma e o conteúdo das
comédias, determinando em primeiro lugar sua filiação estética.
Assim, a “imitação” Hoje Avental, Amanhã Luva é analisada a partir
de sua característica peculiar, a de ser uma reescritura da comédia
francesa Chasse au lion, de Gustave Vattier e Émile de Najac. Muito
comum na época, o procedimento de acomodar à paisagem brasileira
enredo e personagens de uma peça estrangeira foi talvez uma escolha
premeditada do jovem aprendiz de comediógrafo em sua primeira
incursão pela forma dramática. Aos vinte e um anos de idade, em
1860, deve ter avaliado que partir de um texto pronto para criar sua
própria comédia era um porto seguro e uma maneira de se exercitar
com a escrita dramatúrgica. Não se tem notícia de que essa pecinha
tenha sido representada. Por muito tempo, ficou esquecida nas páginas
do jornal A Marmota, onde foi publicada. Nilton desenvolve sua
análise e interpretação com acuidade, baseado na leitura do original
francês, para caracterizar os acréscimos e as supressões que esse texto
11. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 11
sofreu nas mãos de Machado, ao transpor para o Rio de Janeiro, com
personagens brasileiros, a ação que se passava na França.
Não demorou muito para que o jovem comediógrafo testasse
sua capacidade de criar enredos e personagens, sem se apoiar em texto
alheio. Com Desencantos, publicada em 1861 – seu primeiro livro,
diga-se de passagem –, demonstra que o envolvimento com o teatro
era fruto de um grande interesse por essa forma de expressão artística.
Daí seguir-se a encenação, em 1862, no Teatro Ateneu Dramático,
das comédias O Caminho da Porta e O Protocolo, reunidas em livro
publicado em 1863. Nilton as estuda com perfeito domínio do gênero
a que pertencem: o do provérbio dramático, que na França havia tido
um mestre extraordinário: Alfred de Musset. Machado o admirava
como autor de comédias elegantes, refinadas, nas quais a linguagem
era tudo. Também conhecia Octave Feuillet, escritor muito em voga
naqueles tempos e que havia escrito alguns provérbios dramáticos.
Determinar a natureza das comédias machadianas, analisar
seus procedimentos cômicos de bom gosto, caracterizar a construção
dos personagens colhidos na alta sociedade, bem como a simplicidade
dos enredos e os diálogos espirituosos, eis o trabalho levado a cabo
pelo autor deste livro. Além disso, vale ressaltar que sua preocupação
maior parece ter sido não deixar nada sem explicação. Lembremos
que Machado gostava de citar outros escritores e demonstrar erudição.
A Bíblia, Shakespeare, os clássicos gregos e latinos, a mitologia, a
história, a política, a literatura, a filosofia, a pintura, o teatro, a ópera,
eis algumas das principais referências do escritor brasileiro, sempre
presentes em suas obras, citadas às vezes de maneira indireta ou
cifrada. Nilton não se intimida diante do grande número de citações
em cada peça teatral que analisa e as esclarece para o seu leitor, de
modo que o livro tem também essa qualidade.
Oprovérbiodramáticofoiaformateatralquemaissensibilizou
Machado, talvez porque ele não tinha em alta conta a farsa e seus
recursos cômicos rasteiros. Também não quis escrever comédias
realistas, que estavam na moda, conciliando naturalidade em cena
12. 12 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
e preocupações moralizadoras. Por isso, foi cobrado pelo amigo
jornalista Quintino Bocaiuva, que em célebre carta na qual comenta
O Caminho da Porta e O Protocolo, afirma que essas peças eram
apenas esboços para obras de maior vulto e que se prestavam mais
à leitura do que à representação. Nilton esmiúça esse fato e mostra
como a fortuna crítica do Machado comediógrafo, ao longo do tempo,
ficou marcada pela opinião de Bocaiuva, que deve ser relativizada.
Estudados os provérbios dramáticos, o livro se detém na
análise da sátira política Quase Ministro e nas comédias inspiradas
pela Grécia antiga: Os Deuses de Casaca e Uma Ode a Anacreonte.
As duas primeiras foram representadas em saraus literários em 1863
e 1865, respectivamente. A última, publicada no livro de poemas
Falenas, de 1870, não chegou ao palco. Nilton ressalta a qualidade
desses textos nos quais Machado revela-se crítico atento dos nossos
costumes políticos e conhecedor tanto da mitologia quanto da poesia
grega antiga.
Por último, mas não menos importante, quero apontar mais
um acerto do autor: seu ponto de partida foi a decisão de estudar as
comédias de Machado sem a preocupação de compará-las aos contos
e romances que escreveu. É comum, em estudos abrangentes sobre o
escritor, que dois ou três parágrafos sejam dedicados a comparar sua
prosa com seu teatro, para diminuir o valor ou a importância deste.
Nilton não aceita essa abordagem e estuda as comédias inserindo-as
na tradição teatral de seu tempo e considerando-as como realizações
estéticasindependentesdasoutrasobrasdeMachado.Talprocedimento
garante análises e interpretações isentas de comentários apressados e
concentradas no que realmente interessa. Desse modo, o autor nos
brinda com um livro que trata com o devido cuidado e respeito um
conjunto expressivo de textos machadianos, lidos e estudados atenta e
minuciosamente.
João Roberto Faria
Crítico, historiador e professor sênior da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).
13. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 13
INTRODUÇÃO
O teatro machadiano
e seu contexto
Boa parte dos estudos realizados sobre a obra de Machado
de Assis tem como objeto a produção ficcional em prosa, isto é, o
foco dos estudiosos quase sempre esteve voltado, principalmente,
para os romances e contos do autor. Machado é reconhecido como o
principal romancista brasileiro, tanto pelo seu trabalho de inovação
da forma quanto pela busca de um conteúdo elevado – expressão
de sensibilidade e inteligência. Um dos críticos machadianos, José
Aderaldo Castello, Realidade e ilusão em Machado de Assis, afirmou:
Considerando o conjunto da obra – crítica, crônica, teatro,
poesia, conto, romance e até mesmo correspondência –
reconhecemos nela, cronologicamente, uma evolução
equilibrada e perfeita, com entrosamento rigoroso de
gêneros e temas, convergindo para a sua mais legítima
forma de expressão, o romance.
Não faltou, também, quem considerasse o contista mais
importante do que o romancista; é o caso de Lúcia Miguel Pereira,
que, em Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, escreveu: “foi
incontestavelmente como contista que Machado de Assis fez as suas
obras-primas”. Embora não haja unanimidade sobre a melhor forma
de expressão do escritor, Machado de Assis exerceu com grande
maestria tanto a arte do conto como a do romance.
14. 14 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
O que nos chama a atenção nesse caso não é a dúvida que
paira sobre esta questão: se Machado de Assis foi melhor romancista
ou contista; mas, sim, o fato de não encontrarmos, com a mesma
intensidade, discussões similares sobre as outras facetas do escritor.
Outros setores de sua obra, entretanto, têm, nos últimos anos, recebido
uma atenção crescente – alguns setores mais que outros. Talvez a
crônica e a crítica literária sejam os objetos eleitos para estudo pela
maioria dos pesquisadores mais recentes.
Embora Machado de Assis tenha iniciado sua carreira como
poeta, poucos são os estudos literários que miram ou miraram
sua produção poética, tão importante quanto a ficção para uma
compreensão abrangente da obra. Em geral, entre os que desconhecem
a produção poética de Machado há sempre uma fala comum, que
afirma não ser a sua poesia de grande valor.
Esse mesmo tipo de observação recai, de forma ainda
mais aguda, sobre a produção teatral. Apesar da sua incontestável
importância no universo literário brasileiro, Machado de Assis
quase nunca é lembrado como um homem de teatro. A sua obra
dramatúrgica, ainda hoje, permanece pouco explorada, embora ela
tenha estado presente desde o início de sua carreira. Ele atuou como
crítico teatral, e foi tradutor e autor de peças.
A atividade de Machado, no tocante ao gênero dramático,
persistiu ao longo de quase toda a sua carreira literária, começando em
1860 com a publicação de “Hoje avental, amanhã luva” no periódico A
Marmota, e terminando com a publicação de “Lição de botânica” em
1906 no livro Relíquias de casa velha. Durante os primeiros anos da
vida adulta, Machado de Assis foi também censor do Conservatório
Dramático, órgão que emitia pareceres sobre os textos a serem
representados nos teatros do Rio de Janeiro.
Sobre sua atividade como crítico teatral, escreveu João
Roberto Faria, no ensaio “Machado de Assis e o teatro de seu tempo”,
publicado como introdução ao volume Machado de Assis: do teatro,
em que foram reunidos os textos machadianos relativos àquela arte:
15. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 15
Machado de Assis tinha apenas 20 anos quando assumiu
o posto de crítico teatral do jornal O Espelho, no segundo
semestre de 1859. No ano seguinte passou para o Diário
do Rio de Janeiro, onde escreveu crônicas e artigos sobre
literatura e teatro por cerca de uma década, período em que
colaborou também para outros jornais: O Futuro, Imprensa
Acadêmica e Semana Ilustrada. Como crítico ou cronista,
Machado acompanhou de perto o movimento dos teatros
no Rio de Janeiro e a carreira de vários artistas dramáticos,
sobre os quais fez observações críticas que hoje nos
ajudam a compreender não só os aspectos particulares do
trabalho dos nossos principais intérpretes do passado, mas
igualmente o próprio funcionamento da cena brasileira nos
tempos do Romantismo e Realismo.
Sábato Magaldi, no Panorama do teatro brasileiro, escreveu
que ele foi “possivelmente a maior autoridade [na crítica teatral] que
tivemos no século XIX”, no Brasil. Tal afirmativa pode ser comprovada
com facilidade: desde os seus dois primeiros artigos publicados, aos
17 anos, nos jornais Marmota Fluminense e A Marmota, “Ideias
Vagas: A Comédia Moderna” e “O Passado, o Presente e o Futuro
da Literatura” respectivamente; passando pelas as séries de crítica
teatral intituladas “Revista de Teatros” (em O Espelho) e “Revista
Dramática” (no Diário do Rio de Janeiro), por sua atuação como
censor do Conservatório Dramático (a partir de 1862), pelos estudos
que dedicou às obras teatrais de Gonçalves de Magalhães, José de
Alencar e Joaquim Manuel de Macedo (que se tornaram muito
conhecidos), até suas observações sobre teatro nas diversas séries de
crônicas que publicou, o interesse constante de Machado de Assis pela
arte dramática ficou, portanto, muito bem documentado.
Em sua atividade de tradutor, é preciso pôr em relevo que
Machado de Assis verteu para o português cerca de quinze peças, todas
elas francesas. De acordo com Helena Tornquist, em As novidades
velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia francesa, “num
sistema literário em formação como o brasileiro, a opção por traduzir
peças de teatro, além de atender à crescente demanda das plateias,
16. 16 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
não deixa de ter um sentido propedêutico.” Em outras palavras: um
sentido de iniciação.
Essa observação pode ser aplicada à peça “Hoje avental,
amanhã luva”, que, para além de uma tradução, classifica-se como
uma “imitação” de um texto francês. Neste caso, o tradutor não fez
uma transposição literal das falas do texto original para a língua
portuguesa, ele foi além: realizou cortes e acréscimos quando julgou
necessários, procurou aproximar a peça traduzida da realidade
brasileira, localizando a ação dramática na cidade do Rio de Janeiro,
no período do carnaval, e inseriu várias referências locais que a
pudessem aproximar do público.
Como autor dramático, Machado de Assis escreveu: Hoje
avental, amanhã luva (1860); Desencantos (1861); O Caminho da porta
(1862); O protocolo (1862); Quase ministro (1862); As forcas caudinas
(1863); Os deuses de casaca, (1864); Uma ode de Anacreonte (1870);
Tu só, tu, puro amor (1880), Não consultes médico (1896), e Lição de
Botânica (1906). Um total de onze peças.
Relacionados ao gênero dramático, há, ainda, outros textos
menores e menos conhecidos, como é o caso de “Odisseia dos vinte
anos” (inacabado), publicado em 1860 na Marmota. Esse texto foi
nomeado por Machado de Assis como “fantasia num ato”; é uma
história “teatral”, mas pouco cênica, segundo Jean Michel-Massa,
em A juventude de Machado de Assis. Além disso, vale destacar que
escreveu vários textos que apresentam características teatrais, como é
o caso de “Antes da missa”, “Viver”, “Lágrimas de Xerxes”, “Teoria
do medalhão”, “O bote de rapé” e vários outros.
Diante dessa atuação tão intensa, fica no leitor o interesse em
saber por que a crítica literária brasileira relegou a um segundo plano a
produção teatral de Machado de Assis, deixou-a, às vezes, à margem,
ou completamente ignorada, em detrimento da obra ficcional – mais
especificamente, do conto e do romance.
17. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 17
É difícil compreender a causa desse fenômeno, pois não
sabemos exatamente por que a crítica não se dedicou a estudar, com
afinco, sua produção dramatúrgica. Talvez o fato de alguns críticos
(os primeiros) terem desqualificado sua produção teatral tenha sido o
motivo que levou os pesquisadores a não se interessarem por ela.
É bem provável que a origem dessa atitude, por parte dos
estudiosos de literatura, esteja apoiada na famosa carta que Quintino
Bocaiuva escreveu a Machado, quando este solicitou ao amigo – numa
carta – opinião sobre as duas primeiras comédias que tinha escrito e
feito representar. Na carta-resposta, o crítico se posicionava a respeito
de “O caminho da porta” e “O protocolo”, dois textos que estão entre as
primeiras peças escritas por Machado, isto é, os primeiros exercícios
teatrais realizados pelo escritor. As duas cartas, tanto a de Machado
como a de Quintino, foram publicadas, juntamente com as duas peças,
no volume intitulado Teatro de Machado de Assis, volume I, em 1863,
pela Tipografia do Diário do Rio de Janeiro. O crítico, em resposta ao
seu amigo, o jovem escritor, apontou a falta de teatralidade presente
nas duas peças que este último tinha escrito. Independentemente da
veracidade ou da validade dessa avaliação, o fato é que ela ganhou
corpo e acabou por ser reproduzida por outros críticos, mesmo sem
um exame das peças e, o que é pior, acabou por ser aplicada a toda a
obra teatral de Machado de Assis.
Prova de que as palavras de Quintino Bocaiuva se tornaram
“verdades dentro da crítica machadiana” pode ser encontrada nas
obras de historiadores da literatura brasileira e de críticos, como, por
exemplo, Mário de Alencar, José Veríssimo, Lúcia Miguel Pereira,
Alfredo Bosi e vários outros.
Somente em 1960, ao publicar o livro Machado de Assis e
o teatro, Joel Pontes chama a atenção da crítica para a necessidade
de um estudo mais apurado sobre a obra teatral do maior ficcionista
brasileiro. Segundo Pontes, só o fato de os textos existirem já se
colocava como um imperativo para que fossem avaliados: “Não
obstante, é um trabalho necessário.”
18. 18 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
Numa tentativa de reavaliação do que tinha sido dito até então
sobre esse teatro, ao publicar o livro A juventude de Machado de Assis,
em 1971, Jean Michel-Massa, fez os seguintes comentários:
Sem dúvida, do ponto de vista da concepção de teatro que
Bocaiuva e Machado de Assis defendiam, as duas peças
foram condenadas. Bocaiuva constatou que seu amigo
não escreveu comédias morais, sociais, populares, numa
palavra “comprometidas”, segundo o modelo traçado por
Dumas Filho e de acordo com as ideias de Victor Hugo. Em
relação a esta ideologia é que as peças de Machado de Assis
se mostram sem valor. [...] A crítica de Bocaiuva, muito
severa, embora plena de encorajamentos atenuantes, deve
ser apreciada à maneira da teoria do teatro que vigorava
na época. Equivale isto a dizer que estas peças têm algum
valor em relação a outra concepção de teatro? Com efeito,
ao lado das peças “comprometidas”, há o “antiteatro” da
época, o teatro dos provérbios. [...] As obras do gênero,
cujos mestres são, no século XIX, Feuillet e Musset, têm
outra densidade.
Observe-se que Massa chama a atenção dos leitores para a
forma como as duas comédias foram avaliadas, isto é, o teatro de
Machado de Assis se mostra sem valor para Quintino Bocaiuva porque
o autor não tinha adotado a perspectiva em voga na época: a do teatro
“comprometido”. Quintino Bocaiuva só conseguia aceitar um teatro
que afinasse com o seu gosto. Ao mesmo tempo, o crítico francês
destaca a importância de analisar as peças de Machado como uma
espécie de “antiteatro” – também existente na época e cujos modelos
seriam Feuillet e Musset.
* * *
Para contextualizar a cena teatral na cidade do Rio de Janeiro
no início da segunda metade do século XIX, é preciso voltar no
tempo para trazer à luz algumas informações importantes tanto sobre
19. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 19
Machado como sobre o estado geral da arte dramática no Brasil
daquele tempo.
A primeira incursão de Machado de Assis no campo teatral
aconteceu em 31 de julho de 1856. Nesta data, com apenas 17 anos,
ele publicou no jornal Marmota Fluminense, de propriedade de
Paula Brito, o texto intitulado “Ideias vagas: a comédia moderna”.
O subtítulo do artigo aponta para a direção do assunto que o autor
pretende abordar: o teatro de seu tempo. A expressão “comédia
moderna”, neste caso, deve ser entendida como as peças do gênero
que o “Teatro Ginásio Dramático começara a encenar a partir de 1855,
com boa receptividade de público e crítica”, conforme afirma João
Roberto Faria, em “Machado de Assis e o teatro de seu tempo”, ensaio
já mencionado. Se, por um lado, esse texto publicado na juventude do
autor revela-nos um crítico ainda pouco habituado à cena teatral, por
outro, traz ideias e conceitos que acompanharão a atividade crítica de
Machado ao longo de toda a sua carreira.
Para o autor de “Ideias vagas: a comédia moderna”, o teatro é
lugar de “distração e ensino”, “verdadeiro meio de civilizar a sociedade
e os povos” – é o meio pelo qual se conhece “o grau de civilização
de um povo”. Ao colocar a França como o centro irradiador das
civilizações modernas, “foco luminoso da literatura e das ciências”,
Machado de Assis conclama o público:
Ao teatro! [...] – Ao teatro ver a sociedade por todas as
faces: frívola, filosófica, casquilha, avara, interesseira,
exaltada, cheia de flores e espinhos, dores e prazeres, de
sorrisos e lágrimas! – Ao teatro ver o vício em contato com
a virtude; o amor no coração da mulher perdida, como a
pérola no lodo do mar; o talento separado da ignorância
apenas por um copo de champagne! – Ao teatro ver as
cenas espirituosas da comédia moderna envolvendo uma
lição de moral em cada dito gracioso; ver a interessante
coquette que jura amor em cada valsa e perjura em uma
quadrilha; ver o literato parasita que não se peja de subir
as escadas de mármore do homem abastado, mas corrupto,
curvar-se cheio de lisonja para ter a honra de sentar-se a seu
lado e beber à sua saúde!
20. 20 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
As palavras do autor não deixam dúvida sobre sua crença
de que o teatro, mais especificamente a comédia moderna, é o lugar
onde é possível ao público ver “todas as faces” da sociedade sendo
discutidas, com pequenas lições de moral. Além disso, Machado
de Assis afirma, também, que a comédia moderna ainda era pouco
aplaudida naquele tempo, porque havia entre eles, também, a presença
“de alguns apreciadores frenéticos da farsa antiga e sem gosto, das
clássicas cabriolas e da atroadora pancadaria empregada quando o
espírito falece em fastidiosos e insípidos diálogos.” O autor não só se
coloca a favor de um determinado tipo de comédia como também se
opõe às farsas que eram encenadas nos teatros e, muitas vezes, usavam
de recursos pouco educativos.
No momento em que Machado de Assis publicou o seu
primeiro texto sobre teatro (1856), os palcos do Rio de janeiro, após
um longo período sem nenhuma novidade, passavam por um processo
de renovação que foi marcado pela rivalidade entre os dois principais
teatros da época: o São Pedro de Alcântara e o Ginásio Dramático.
A primeira dessas casas era de propriedade do ator e
empresário João Caetano, uma das personalidades mais importantes
da história teatral brasileira, que tinha estreado como ator no ano de
1827 e, em 1833, criara a primeira companhia dramática nacional,
com o objetivo, conforme explica João Roberto Faria em O teatro
realista no Brasil, de “conquistar um espaço de trabalho até então
sob domínio exclusivo de artistas portugueses”. Em 13 de março de
1838, já com reconhecimento do público e da crítica, João Caetano
interpretou, com grande louvor, o papel principal da tragédia Antônio
José ou O Poeta e a Inquisição, de Gonçalves Magalhães. Além desse
feito, após alguns meses, o talentoso ator também levara à cena a
primeira comédia escrita por Martins Pena, O Juiz de Paz da roça.
A comédia de Martins Pena estreou no dia 4 de outubro e não contou
com a mesma recepção, por parte do público, que teve Antônio José,
de Gonçalves de Magalhães. Essa comédia foi o ponto inicial de uma
tradição teatral que iria se consolidar como a mais importante do teatro
brasileiro do século XIX: a da comédia de costumes.
21. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 21
Nesse contexto de vida teatral ainda incipiente, é admirável
a aparição, num mesmo tempo e num mesmo lugar, de um ator da
qualidade de João Caetano e de dois autores teatrais também de
qualidades admiráveis. As duas peças levadas ao palco em 1838 têm
sido consideradas por críticos e historiadores do teatro como a primeira
tragédia e a primeira comédia nacionais. Segundo João Roberto Faria,
em O teatro realista no Brasil, data dessa época o surgimento do
teatro brasileiro, “entendido como um sistema integrado por autores,
intérpretes, obras e público”. Pela primeira vez tínhamos uma plateia
brasileira assistindo a dois espetáculos de autores brasileiros, e sendo
protagonizados também por atores brasileiros. Isso, para um país que
mal acabara de conquistar a sua independência (1822), representava
um grande esforço para a criação de uma identidade nacional e,
consequentemente, de um teatro nacional, que, naquele momento, não
existia.
Por esse tempo, estávamos inseridos historicamente no que se
convencionou chamar, no contexto brasileiro, de Romantismo: vale
lembrar que o mesmo autor de Antônio José ou O Poeta e a Inquisição
havia publicado dois anos antes (1836) Suspiros poéticos e saudades,
obra inaugural daquele movimento literário entre nós. Dessa forma,
pode-se afirmar que o surgimento do teatro brasileiro, entendido como
um sistema, na acepção sociológica que Antonio Candido empregou
na Formação da literatura brasileira, está intimamente associado ao
movimento romântico.
Nesse cenário, a figura mais importante é, sem dúvida, por
suas ações concretas, a de João Caetano. Foi ele, em sua dupla função,
como ator e como empresário, que deu alento ao período de formação
do teatro brasileiro durante o Romantismo. Talento incontestável,
intérprete intenso, João Caetano, no início de sua carreira, tornou-se
conhecido por representar tragédias neoclássicas, arroladas por Luiz
Fernando Ramos, no estudo “João Caetano, José La Puerta, e outros
atores empresários”: Zaíra, de Voltaire; Fayel, de Baculard deArnaud;
Otelo e Hamlet, de Shakespeare; A Nova Castro, de João Batista
22. 22 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
Gomes Júnior; Antônio José ou O Poeta e a Inquisição, de Gonçalves
de Magalhães; Oscar, de Vincent Arnaut; Aristodemo, de Vincenzo
Monti.
Além das tragédias neoclássicas, João Caetano levou à cena
cerca de vinte dramas românticos, entre os anos de 1843 e 1845 –
conforme o autor citado no parágrafo anterior. Foi devido aos esforços
do grande ator que o público brasileiro ficou conhecendo as obras
de Victor Hugo e Alexandre Dumas (pai). Do primeiro, ele encenou
Ernani e O Rei se Diverte; do segundo, ele encenou várias peças, entre
elas, Antony, A Torre de Nesle e Kean ou Desordem e Gênio.
A partir de 1845, João Caetano passou a se dedicar mais a
um repertório de forte apelo popular do que a peças de valor literário
como as que foram encenadas nos anos anteriores. Os melodramas
de Joseph Bouchard, Victor Ducange, Anicet-Burgeois e Adolphe
Dennery seduziram o ator por causa do fácil sucesso que conseguia
junto ao público. Esse momento da carreira do ator fluminense é
analisado da seguinte forma por Décio de Almeida Prado, na obra
intitulada João Caetano:
Para João Caetano, em particular, a literatura melodramática
foi o esteio que o escorou nos anos de maturidade.
Transpostas as ilusões da juventude, quando ele encarnou,
perante os olhos maravilhados dos escritores do seu tempo,
seja os últimos lampejos da tragédia neoclássica, seja a
meteórica ascensão do drama romântico, seja a esperança de
uma dramaturgia nacional, a realidade de todos os dias que
lhe restou nas mãos, como expressão média da sensibilidade
teatral brasileira, foi muito mais Bouchardy do que Victor
Hugo, muito mais Dennery e Anicet-Bourgeois do que
Voltaire e Ducis. A partir de 1845, à medida que crescem os
seus encargos comerciais e as suas responsabilidades como
empresário, todos os seus grandes êxitos são, de uma forma
ou de outra, de natureza popular. A bilheteria falava – e
João Caetano, vivendo de sua profissão, não podia fechar
os ouvidos.
23. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 23
A partir de 1851, João Caetano, conhecido e admirado pelo
seu público, o ator mais importante do seu tempo, aclamado pela
crítica e sem nenhum outro ator que pudesse ameaçar o seu talento,
passou a administrar o principal teatro do Rio de Janeiro, o São Pedro
de Alcântara, onde as peças de sua companhia eram representadas.
Na primeira metade da década de 1850, os dois teatros mais
atuantes da cidade do Rio de Janeiro eram o Lírico Fluminense e o São
Pedro de Alcântara. O primeiro era dedicado ao repertório operístico,
principalmente de companhias estrangeiras; o segundo, ao repertório
de tragédias neoclássicas, de dramas e, com maior intensidade nesse
período, de melodramas. De maneira geral, a situação da vida teatral
fluminense em meados do século XIX não apresentava nenhuma ou
quase nenhuma novidade para o público, que estava acostumado às
representações do repertório pesado de João Caetano, marcado por
exageros de interpretação e permeado por personagens que viviam
emoções fortes, paixões violentas e situações desesperadas. Era esse
o quadro geral da cena teatral da capital do Império até meados da
década de 1850.
O ator e empresário João Caetano gozava de hegemonia,
sem nenhuma concorrência, até o dia 05 de março de 1855, quando o
Diário do Rio de Janeiro noticiou que uma nova empresa teatral tinha
sido criada para produzir espetáculos no Teatro de São Francisco,
com o objetivo, segundo João Roberto Faria em O teatro realista,
de “estabelecer o verdadeiro e apurado gosto pela representação do
vaudeville e comédia.” Desde sua origem, no século XV, até início do
século XVIII, o vaudeville era um espetáculo de canções, acrobacias
e monólogos. A partir do século XIX, o vaudeville passou a ser uma
comédia de intriga, uma comédia ligeira, sem pretensão intelectual .
O empresário Joaquim Heleodoro Gomes dos Santos, à frente
da nova empresa teatral, mudou o nome do Teatro de São Francisco
para Teatro Ginásio Dramático – certamente inspirado no Gymnase
Dramatique de Paris – e contratou o ensaiador Émile Doux para
assumir a encenação dos espetáculos. O ensaiador francês já tinha
24. 24 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
trabalhado na companhia de João Caetano durante três anos e tentado
renovar o repertório do São Pedro, chegando mesmo a representar,
segundo Sílvia Cristina Martins de Souza, em As noites do Ginásio,
alguns vaudevilles nesse teatro, conforme sugere um jornal da época.
A experiência, entretanto, foi rápida e não provocou grandes impactos
na dinâmica do repertório que o Teatro São Pedro de Alcântara estava
acostumado a representar.
De acordo com as informações presentes no verbete “Émile
Doux, o Primeiro Ensaiador do Teatro Ginásio Dramático”, da
História do teatro brasileiro, volume I, são poucas as notícias que
temos sobre esse personagem, que chegou ao Brasil em 1851, após
uma longa passagem por Portugal, onde dirigira várias companhias
teatrais. Naquele país europeu, onde chegara em 1834 com uma
companhia francesa, sabe-se que encenou diversos dramas românticos
franceses e introduziu o vaudeville com grande sucesso. De certa
forma, Doux fez o mesmo no Brasil, pois, entre os meses de abril, data
da inauguração, e outubro de 1855, o Ginásio Dramático produziu
em torno de vinte cinco comédias de Scribe, com boa aceitação do
público e por parte da imprensa. Na noite de estreia, 12 de abril de
1855, o Ginásio apresentou um programa duplo: o drama em dois
atos Um erro, de Scribe, e a ópera-cômica em dois atos O primo da
Califórnia, de Joaquim Manuel de Macedo.
Os jovens que atuavam na imprensa naquele tempo, alguns
muito conhecidos atualmente, como é o caso de José de Alencar por
exemplo, abraçaram a causa do Ginásio Dramático e prestaram apoio
à empresa de Heleodoro. O futuro autor de O guarani, em sua coluna
“Ao correr da pena”, do jornal Correio Mercantil, do dia 15 de abril
de 1855, saudou a estreia do Ginásio e pediu apoio aos leitores com o
objetivo de impulsionar nossa arte dramática:
Assistimos quinta-feira à primeira representação da nova
companhia no teatro S. Francisco: foi à cena um pequeno
drama de Scribe, e a Comédia do Dr. Macedo.
Embora fosse um primeiro ensaio, contudo deu-nos as
25. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 25
melhores esperanças: a representação correu bem em geral,
e em algumas ocasiões foi excelente.
O que resta pois é que os esforços do Sr. Émile Doux sejam
animados, e que sua empresa alcance a proteção de que
carece para poder prestar no futuro alguns serviços.
Cumpre que as pessoas que se acham numa posição elevada
deem o exemplo de uma proteção generosa à nossa arte
dramática. [...] Que vale entre tantas despesas de luxo a
mesquinha assinatura de um pequeno teatro? Que importa
que se sacrifique uma ou duas noites para dar impulso à
nossa arte dramática e ganhar no futuro um passatempo útil
e agradável?
O Diário do Rio de Janeiro, no “Folhetim (Álbum)”, na
mesma data, enfatizou a feliz escolha da peça de Joaquim Manuel de
Macedo, por se tratar de um talento nacional, e destacou a importância
da criação do Ginásio:
[...] veio oferecer ao público fluminense mais uma distração
agradável e útil, e que, na realidade, satisfaz os desejos das
pessoas para quem o teatro não é simplesmente uma praça
de touros, mas um lugar de respeito, onde são necessários
todos os preceitos da boa educação, como em qualquer
salão onde se reúne gente civilizada e polida.
Não faltou quem aproveitasse a ocasião para criticar as
produções do ator João Caetano, bem como seu modo de interpretar
e seu repertório, que já eram considerados antiquados pela nova
geração aberta às novidades. No Jornal do Commercio, também do
dia 15 de abril, o folhetinista de A semana, anônimo, teceu elogios
à empresa teatral de Joaquim Heleodoro, destacou a importância da
concorrência e aproveitou para criticar o estado de paralisia do Teatro
São Pedro de Alcântara:
A concorrência é sempre conveniente e profícua: cumpre
portanto que o público proteja a nova empresa do Ginásio,
não só porque assim lhe dará a força precisa para avançar
na difícil e espinhosa estrada que tem diante de si, como
26. 26 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
porque desse modo despertará o teatro S. Pedro do sono
em que dorme, e com o sopro da emulação o arrancará da
calmaria podre a que se tem condenado.
Após a inauguração do teatro Ginásio Dramático, as críticas
contra o Teatro São Pedro nas páginas dos jornais tornaram-se comuns
e, por vezes, muito hostis. O ator e empresário João Caetano parecia
estar confortável com a subvenção que recebia do governo imperial
e do sucesso que tinha alcançado junto ao público. Sem renovar o
repertório e o seu modo de interpretação, o ator se tornou um alvo
fácil de críticas por parte daqueles que apoiavam a renovação da cena
fluminense e viam no Ginásio um aliado importante para a realização
desse feito.
Durante os seis primeiros meses, o teatro Ginásio Dramático
consolidou seu trabalho na cena teatral do Rio de Janeiro e ganhou
fôlego para dar um passo mais ambicioso rumo ao seu objetivo inicial.
Sobre esse passo a mais, escreveu João Roberto Faria, em Ideias
teatrais: o século XIX no Brasil:
A partir de outubro de 1855, [o Ginásio] passou a encenar
um novo tipo de peça, que na França vinha obtendo um
enorme sucesso: a comédia realista, de autores como
Alexandre Dumas Filho, Émile Augier, Théodore Barrière,
e Octave Feuillet, entre outros. A rivalidade com o Teatro
São Pedro de Alcântara ficou ainda mais evidente nos anos
que se seguiram. Já não se tratava apenas de uma questão
empresarial, mas principalmente estética: de um lado, o
velho e alquebrado romantismo; de outro, o realismo, com
uma nova maneira de conceber o teatro, tanto no plano da
dramaturgia quanto do espetáculo.
As mulheres de mármore, de Théodore Barrière e Lambert
Thiboust, foi a primeira peça do realismo francês a ser encenada no
palco do Ginásio Dramático, em 26 outubro de 1855. Elogiado pelo
Conservatório Dramático, acolhido pela imprensa e aplaudido pelo
público, o espetáculo foi um verdadeiro sucesso. Os folhetinistas que
27. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 27
atuavam na imprensa elogiaram o “esmero e cuidado da encenação”,
os “fatos da vida” comum presentes no enredo e classificaram a peça
como uma “lição de alta e severa moral”, que deveria ser aproveitada
por todos. Paula Brito, na Marmota Fluminense do dia 18 de novembro
de 1855, não poupou elogios ao Ginásio – “nosso predileto”; ao drama
encenado – “em nossa opinião tão bem concebido pelo autor francês”;
ao tradutor – “tão bem compreendido pelo tradutor Brasileiro (o Sr. J.
J. Vieira Souto)”; e aos atores – “tão satisfatoriamente desempenhado
pela companhia”. Além dos elogios, o folhetinista da Marmota
Fluminense chama a atenção dos leitores para o fundo moralizante
presente na composição de Barrière e Thiboust:
As – MULHERES DE MÁRMORE – Les Filles de
Marbre – em francês (que na nossa língua não podia ter
uma verdadeira tradução sem ofender as leis da decência),
é uma composição toda moral em seu fundo, toda para
moralizar e desenganar os jovens inexpertos, que no fogo
das primeiras paixões se deixam levar ao precipício por
mulheres perdidas (mulheres de mármore), que não os
amam, que não os querem senão para o prazer de alguns
dias, de algumas semanas, ou de alguns meses; composição
representada aos olhos dos espectadores por quadros ao
vivo, cheios de pinturas expressivas, de cores carregadas,
mas verdadeiras, e cada um deles de produzir por si o
desejado efeito.
Paula Brito não podia ser mais claro quanto à defesa dos
valores da comédia realista; não se tratava apenas de mais uma
novidade vinda da Europa, mas de uma peça que, devido ao seu tema,
podia ter a função social de educar “os jovens inexpertos” que, muitas
vezes, “no fogo das primeiras paixões”, se perdiam nos encantos de
“mulheres perdidas”. Temos, neste caso, a noção do teatro utilitário, ou
seja, o palco transformado em espaço para debate de questões sociais.
Após o sucesso alcançadocomapeçaAsmulheresdemármore,
de Théodore Barrière e Lambert Thiboust, o Ginásio Dramático
encenou, segundo João Roberto Faria (em “O daguerreótipo moral
28. 28 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
de José de Alencar”), Os parisienses, dos mesmos autores; A dama
das camélias e O mundo equívoco, de Alexandre Dumas Filho; Os
hipócritas e A herança do Sr. Plumet, de Théodore Barrière e Ernest
Capend; O genro do Sr. Pereira, Os descarados e As leoas pobres,
de Émile Augier; A crise, Dalila, O romance de um moço pobre e
A redenção, de Octave Feuillet; Por direito de conquista, de Ernest
Legouvé. Outras peças que também apresentavam temas moralizantes
e tinham como intuito discutir questões relacionadas ao trabalho,
ao casamento, à família, ao dinheiro, entre outros assuntos, se não
foram encenadas, tiveram publicações em forma livro ou foram lidas
em rodas literárias, como é o caso de A questão do dinheiro, Um pai
pródigo e O filho natural, de Alexandre Dumas Filho; e O Casamento
de Olímpia, de Émile Augier, que teve sua encenação proibida porque
o Conservatório Dramático considerou seu conteúdo imoral.
O universo retratado nas peças realistas francesas é
basicamente o da burguesia em ascensão. Os escritores interessados
em defender os valores éticos dessa classe que tinha emergido após a
Revolução Francesa procuravam descrever o seu modo de vida e ditar
as normas do “bem viver”. Assim, no enredo das peças encontra-se
quasesempreumaoposiçãomarcadaentrepessoasbem-intencionadas,
educadas, convivendo com outras mal-intencionadas, sem escrúpulo,
que só têm como objetivo enganar, explorar e manipular a parte boa da
história. Nesse contexto, os bons sempre vencem os maus, conseguem
regenerá-los ou afastá-los de suas vidas. Como resultado, temos a
ideia de um quadro que apresenta a imagem de uma sociedade melhor,
moderna e civilizada.
As mudanças introduzidas na cena brasileira pelo Ginásio
Dramático, conforme Sílvia Cristina Martins de Souza, não ficaram
apenas no repertório apresentado ao público: elas tiveram um
impacto também no modo de interpretação dos atores, na elaboração
dos figurinos, na construção e disposição dos cenários, e em
todos os outros elementos cênicos que pudessem contribuir para a
naturalidade da cena, um dos princípios básicos do realismo teatral.
29. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 29
Décio de Almeida Prado, por sua vez, em A utopia dos deserdados,
afirma que as mudanças adotadas pelo chamado teatro realista foram
significativas em relação ao Romantismo:
[...] como tempo dramático, o presente; como diálogo, a
fala de todos os dias; como herói, o homem comum; como
classe, a burguesia; como técnica, enredos simples, fins
de ato tranquilos, ausência de monólogos e apartes; como
temas, os do casamento, do dinheiro, do adultério e da alta
prostituição, encarados, estes últimos, enquanto ameaças à
paz familiar.
Com essas mudanças, o Ginásio Dramático não só se
distanciava cada vez mais do tipo de teatro encenado pelo ator e
empresário João Caetano – “com suas peças de época, com seus
figurinos típicos”, com seus “telões pintados por vezes com paisagens
exóticas”, e com “seu modo de interpretação um tanto exagerado e
grandiloquente” (expressões de João Roberto Faria, no artigo sobre
José de Alencar, já citado) –, como também criava condições para que
uma renovação da linguagem teatral na cidade do Rio de Janeiro.
As mudanças que ocorreram no campo das artes, mais
especificamentenoteatro,nãoestãoisoladasdasoutrastransformações
que estavam acontecendo no país, no Rio de Janeiro, que desde o
início dos anos cinquenta vinha passando por profundas mudanças no
campo social, econômico e político. A estabilidade política do governo
imperial de d. Pedro II, figura altamente respeitada, que contava com
apoios tanto do partido liberal quanto do conservador. Essa fase de
aparente calmaria política no país, durante os decênios de 1850 e 1860,
contrasta com os acontecimentos das duas décadas anteriores (1830-
40), que ficaram marcadas por conflitos sociais, disputas de poder e
uma tentativa de conciliação com os diferentes grupos políticos para
consolidar o imperador à frente do comando do país.
Adécadade1850é,também,descritapeloshistoriadorescomo
um momento de reformas e transformações estruturais da sociedade
brasileira. Sobre isso, afirmou Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes
30. 30 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
do Brasil: “Mesmo depois de inaugurado o regime republicano, nunca,
talvez, fomos envolvidos, em tão breve período, por uma febre tão
intensa de reformas como a que se registrou precisamente nos meados
do século passado [XIX] e especialmente nos anos de 51 e 52.” Como
parte dessas transformações, podemos registrar a criação do segundo
Banco do Brasil (1851), a inauguração da primeira linha telegráfica
na cidade do Rio de Janeiro (1852), a abertura ao tráfego da primeira
linha de estradas de ferro do país (1854), entre outras.
Em grande medida, essas reformas já representavam os
resultados das leis Bill Aberdeen, de 1845, na Inglaterra; e Eusébio
de Queirós, de 1850, no Brasil: ambas visavam à proibição do tráfico
de escravos africanos. Não se trata de uma simples coincidência que
um período de tão grande desenvolvimento venha imediatamente
após uma tentativa de proibição do tráfico negreiro. Veja-se o reflexo
dessa situação no teatro, segundo palavras de João Roberto Faria
(novamente no artigo já citado):
Beneficiadas com o dinheiro que antes era investido na
compra dos escravos, algumas cidades se expandiram,
graças aos negócios que se multiplicaram, ao comércio
que gerou mais empregos, aos bancos, pequenas indústrias,
jornais, às atividades, enfim, que foram desenvolvidas
e gerenciadas por pessoas formadas nas faculdades de
direito, medicina e engenharia, bem como por intelectuais,
negociantes e financistas. Formava-se assim uma classe
média e uma primeira burguesia no país, sensíveis aos
valores éticos que eram defendidos com vigor nas peças
realistas francesas e em seguida nas brasileiras.
Nessa dinâmica social, o teatro Ginásio Dramático se
consolidou como lugar de encontro e entretenimento de uma nova
classe, que começava a se formar na cidade do Rio de janeiro e queria
não só estar alinhada com as novidades vindas de Paris como também
ver seus valores representados no palco a partir de personagens “reais”,
“modernas”, “dotadas de bom gosto” e “civilizadas”. Essa relação
especular permitia ao espectador se reconhecer na trama encenada,
de modo a se acreditar, também, moderno, educado e civilizado.
31. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 31
A consequência desse processo de renovação teatral colocada
em curso pelo Ginásio Dramático foi a influência dos temas e das
formas da dramaturgia realista francesa sobre alguns jovens literatos
em início de carreira, que começavam a escrever as suas peças.
O primeiro autor que alçou voo e contribuiu para a renovação da
cena teatral brasileira, e, consequentemente, para a formação de um
repertório de peças nacionais, foi José de Alencar (1829-1877), que, em
28 de outubro de 1857, estreou como dramaturgo, no palco do Ginásio,
com a comédia O Rio de Janeiro, verso e reverso. Tratava-se de uma
comédia curta, leve – segundo palavras do próprio Alencar: “espécie
de revista ligeira” que tinha por intuito “fazer rir, sem fazer corar”.
Como o título já indicava, a cidade do Rio de Janeiro era cenário e
tema da ação. Talvez esse seja um dos motivos que levou a peça a ter
boa acolhida do público e da crítica, pois as pessoas que assistiam ao
espetáculo se deparavam com um Rio de Janeiro conhecido, com suas
ruas, lojas, perfumarias e personagens.
O sucesso alcançado com a peça O Rio de Janeiro, verso
e reverso encorajou José de Alencar a continuar na carreira de
dramaturgo e, no dia 05 de novembro de 1857 (uma semana após
a estreia de sua primeira peça), era encenada, também no palco do
Ginásio Dramático, a comédia O demônio familiar, obra em 4 atos,
nove personagens e diversas cenas. Essa comédia, escrita nos moldes
das peças realistas francesas, tem como tema a questão da escravidão
e obteve mais sucesso do que a primeira – o que acabou por consagrar
Alencar como um autor renovador da cena brasileira.
Em texto intitulado “A comédia brasileira”, publicado
originalmente no Diário do Rio de Janeiro, no dia 14 de novembro
de 1857, José Alencar, além de esclarecer por que tinha escrito a peça
O demônio familiar, deixou claras quais eram as suas intenções como
autor de texto teatral, sua filiação estética à comédia realista francesa
e a ruptura que os seus textos representavam em relação à dramaturgia
brasileira do período romântico. Escreveu ele:
32. 32 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
No momento em que resolvi a escrever O demônio familiar,
sendo minha tenção fazer uma alta comédia, lancei
naturalmente os olhos para a literatura dramática do nosso
país em procura de um modelo. Não o achei; a verdadeira
comédia, a reprodução exata e natural dos costumes de uma
época, a vida em ação não existe no teatro brasileiro. [...]
Não achando pois na nossa literatura um modelo, fui busca-
lo no país mais adiantado em civilização, e cujo espírito
tanto se harmoniza com a sociedade brasileira; na França.
Depois de O demônio familiar, José de Alencar ainda escreveu,
não com o mesmo sucesso, O crédito, encenada pela primeira vez
em 19 de dezembro de 1857, As asas de um anjo, que foi levada ao
palco em 30 de maio de 1858, o drama Mãe, representado em 24 de
março de 1860, e O que é o casamento, em outubro de 1862. Por fim, a
comédia realista intitulada A expiação, escrita em 1865, publicada em
1868, não chegou a ser encenada por nenhuma companhia teatral.
O caminho aberto por José de Alencar, possibilitou, a partir
de 1857, o surgimento de vários autores nacionais que contribuíram
para o início de uma dramaturgia brasileira na segunda metade do
século XIX. Esses jovens dramaturgos, alguns atuando na imprensa,
também acompanharam o processo de renovação da cena dramática
fluminense e apoiaram as iniciativas do empresário Joaquim
Heleodoro dos Santos à frente do Ginásio Dramático. Os autores e
peças de maior destaque entre os anos de 1857 e 1865, além de José
de Alencar, são: Quintino Bocaiuva – Onfália (1860), Os mineiros da
desgraça (1861); Joaquim Manuel de Macedo – Luxo e vaidade (1860),
Lusbela (1862); Aquiles Varejão – A época (1860), A resignação (1861),
O cativeiro moral (1864); Sizenando Barreto Nabuco de Araújo – O
cínico (1861), A túnica de Nessus (1863); Valentim José da Silveira
Lopes – Sete de setembro (1861), Amor e dinheiro (1862); Pinheiro
Guimarães – História de uma moça rica (1861); Francisco Manuel
Álvares de Araújo – De ladrão a barão (1862); França Júnior – Os
tipos da atualidade (1862); Constantino do Amaral Tavares – Um
33. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 33
casamento da época (1862); e Maria Angélica Ribeiro – Gabriela
(1863), Cancros sociais (1865).
É nesse quadro mais amplo da cena teatral do Rio de Janeiro,
no início da segunda metade do século XIX, que a obra de Machado
de Assis deve ser situada e analisada. O autor de “O caminho da
porta” acompanhou de perto todo o processo de renovação da cena
teatral fluminense do seu tempo e assistiu a boa parte das comédias
realistas representadas no Ginásio Dramático, seja como espectador
ou como crítico de teatro. É de se imaginar que esse cenário cultural
tenha exercido grande influência sobre sua formação intelectual, e
que o tenha levado a se engajar na defesa do teatro como instrumento
capaz de contribuir para o progresso civilizacional da população do
país. Conforme ele escreveu no artigo “A comédia moderna” (1856),
o teatro era o “verdadeiro meio de civilizar a sociedade e os povos”.
∗ ∗ ∗
Nos últimos anos, alguns estudiosos têm se dedicado à tarefa
de analisar a produção teatral de Machado de Assis, em articulação
com o seu contexto histórico e com as estéticas teatrais (romântica
e realista) em vigor no seu tempo, numa tentativa de esclarecer
alguns equívocos interpretativos que foram cometidos no passado.
Além disso, tais estudos buscam recuperar o nosso passado cultural
e trazer à luz dos nossos dias as produções literárias do século XIX
que ainda permanecem desconhecidas de boa parte do público. Entre
esses pesquisadores, podemos destacar: Décio de Almeida Prado,
Jean-Michel Massa, Ruggero Jacobbi, Maria Augusta Hermengarda
Wurthmann Ribeiro, João Roberto de Faria, Cecília Loyola, Helena
Tornquist, Gabriela Maria Lisboa Pinheiro, Rodrigo Camargo de
Godoi.
O fato de Quintino Bocaiuva ter dito, naquele primeiro
momento, que o teatro de Machado de Assis era belo como
artefato literário e compunha-se de “peças para serem lidas e não
34. 34 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
representadas” não desabona o papel desse crítico e muito menos a
visão que ele tinha sobre as duas peças que Machado tinha escrito até
aquele momento. Porém, aceitar essa “verdade” como algo definitivo
e aplicá-la a toda obra posterior do autor é um erro injustificável. Cabe
à crítica – e isto em parte vem sendo feito –, a partir de pesquisas,
investigar a pertinência de tal afirmação e verificar se ela se aplica,
de fato, ou não, àquelas duas comédias produzidas por Machado.
Justamente uma das duas comédias criticadas por Quintino Bocaiuva
(“O protocolo”) recebeu, no século XX, montagem excepcionalmente
boa (por Ziembinski1
). Outra coisa relevante seria demonstrar que
a máxima proferida por Quintino Bocaiuva não se aplica a todos os
textos teatrais escritos pelo autor.
Este nosso estudo teve como objetivo principal analisar os
textos teatrais de Machado de Assis da década de 1860, para tentar
entendê-los no contexto em que foram produzidos, e, assim, buscar
entender como o autor concebeu o seu fazer artístico na segunda
metade do século XIX, no Brasil. Sabe-se que naquele momento a
cultura brasileira era muito influenciada pelas ideias que vinham da
França, buscando lá os seus ideais de renovação socioculturais.
Coube a este estudo, também, especular em que medida os
textos escritos por Machado de Assis para o teatro, por pertencerem
ao gênero dramático provérbio,2
praticado na França por autores como
Octave Feuillet e Alfred de Musset, não foram compreendidos em sua
1 Zbigniew Marian Ziembinski nasceu a 17 de março de 1908, na Polônia,
e morreu em 1978, no Rio de Janeiro. Foi ator e um dos mais importantes
diretores teatrais no Brasil. Apesar de sua origem europeia, ele é considerado
um dos mais importantes encenadores brasileiros. Ver MICHALSKI, Yan.
Ziembinski e o teatro brasileiro, 1955.
2 Um provérbio é sempre uma comédia em um ato, no máximo dois, com uma
ação simplificada. Em sua forma mais característica, é uma pequena comédia
elegante, que tira partido da vivacidade dos diálogos e da espirituosidade das
personagens, mas que evita todo tipo de vulgaridade ou comicidade farsesca. Ver
DICIONÁRIO do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos, 2009, p. 280-281.
35. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 35
dimensão estética e permaneceram em segundo plano tanto na história
do teatro brasileiro como no conjunto da obra do escritor.
João Roberto Faria, no artigo “Machado de Assis, leitor de
Musset”, ao refletir sobre as aproximações estéticas entre as obras
teatrais dos dois autores, aponta duas vias possíveis para se pensar a
obra teatral do autor brasileiro:
[...] O teatro foi, para ele, na juventude e na maturidade, um
gênero em que praticou a leveza, a concisão, a vivacidade do
estilo e a poesia dos sentimentos. Daí o julgamento severo
que essa parte da sua obra tem merecido dos estudiosos,
principalmente quando comparada com os densos
romances e contos que escreveu depois de 1880. Fique
lavrado aqui o meu protesto contra esse tipo de abordagem.
As comédias de Machado precisam ser estudadas no
interior do sistema teatral brasileiro, isto é, no contexto em
que elas efetivamente atuaram. Ou também como textos
autônomos, que têm existência própria, independentes que
são das outras obras de seu criador. Esses são os caminhos
para uma leitura que queira avaliar mais corretamente o
valor das suas comédias e o papel que desempenharam na
história do teatro brasileiro.
Este livro, com capítulos dedicados às peças de Machado,
pretendeu enveredar pelo segundo dos caminhos apontados por
João Roberto Faria. O procedimento metodológico aqui adotado
estuda as obras teatrais machadianas “como textos autônomos, que
têm existência própria, independentes que são das outras obras de
seu criador.” Isso não quer dizer que, por vezes, não estabeleçamos
pontos de contato, ou conexões, das peças com os romances e contos
do escritor. Foi nosso objetivo, também, para melhor compreensão
dos textos, na medida do possível, relacioná-las ao contexto histórico,
social e político daquela época.
O primeiro capítulo, intitulado “Hoje imitador, amanhã
criador”, é um estudo do texto “Hoje avental, amanhã luva”, uma
imitação dramática de uma comédia francesa – Chasse au lion –,
de Gustave Vattier e Émile de Najac. Apesar de não termos notícia
da encenação dessa peça, sabemos que ela foi publicada no jornal
36. 36 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
A Marmota, nos dias 20, 23 e 27 de março de 1860. Embora Jean-
Michel Massa tenha feito o cotejo entre os dois textos (a tradução e o
original francês), ele não os analisou comparativamente. Esta é, então,
a primeira abordagem do texto machadiano que leva em consideração
o original francês. Nessa peça o autor não só traduziu o original
francês para a língua portuguesa, mas cuidou, também, de adaptá-lo à
realidade nacional, o que acabou por dar à obra um sotaque brasileiro.
Machado de Assis, além de ter transposto a ação para a cidade do Rio
de Janeiro, durante o carnaval, inseriu na comédia várias referências
locais, muito precisas, que acabaram colocando o leitor/espectador em
contato com os hábitos e costumes do Brasil da segunda metade do
século XIX. O efeito final foi a criação de uma situação dramática
em que as pessoas podiam se reconhecer nas cenas, e identificar com
precisão lugares, fatos e situações.
O segundo capítulo, “No princípio era o verbo”, consiste em
um estudo das três primeiras peças que Machado de Assis publicou:
Desencantos (1861), “O Caminho da porta” e “O Protocolo”, (Teatro
de Machado de Assis, 1863). A primeira não foi representada, as
duas últimas foram levadas ao palco no Ateneu Dramático do Rio
de Janeiro, respectivamente em setembro e dezembro de 1862.
Procuramos analisar as peças intrinsecamente, na medida do possível
em consonância com o tempo de suas publicações, e cuidamos de
tentar explicar a visão teatral de Machado de Assis naquele momento.
As três peças aqui estudadas anunciam um projeto estético do autor
que tinha como proposta a criação de uma dramaturgia refinada,
elegante e sem os recursos do dito “baixo cômico”.3
São peças curtas,
ao modo dos provérbios franceses, centradas na linguagem, leves e
3 O baixo cômico se caracteriza por procedimentos vulgares: pancadarias,
disfarces, cacoetes de linguagem, extravagâncias de todo tipo, situações absurdas
ou quase inverossímeis, tipificação exagerada das personagens – tudo isso com
objetivo de provocar a gargalhada, o riso solto e desinibido. Pelo contrário, o
alto cômico (alta comédia) busca despertar no espectador um riso contido, ou
apenas um sorriso, baseado no dito espirituoso, na ironia, nas alusões sutis, na
inteligência dos diálogos. Essa diferença não implica aqui um juízo de valor. Ver
DICIONÁRIO do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos, 2009, p. 54-55.
37. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 37
repletas de ditos espirituosos. Elas apresentam enredos relativamente
simples, sem grandes conflitos, e buscam retratar, de alguma forma,
o modo de vida de uma nova classe social (a burguesia em ascensão)
que começava a se formar na cidade do Rio de Janeiro, em meados do
século XIX. Machado deAssis parte desse contexto social para colocar
em cena personagens que se comportam segundo valores e costumes
daquela classe. Em sua maioria os personagens masculinos são
homens educados, finos, cordatos, e possuem atividades profissionais,
tais como políticos, literatos, publicistas, advogados, entre outros;
as personagens femininas são uma viúva, uma namoradeira, uma
casada com um homem socialmente bem situado. As análises desses
tipos e situações, como veremos no estudo das peças, mostram que
Machado de Assis estava em sintonia com o teatro de seu tempo, mais
especificamente com certa dramaturgia de origem francesa.
O terceiro capítulo, intitulado “O desfile dos bajuladores”, é
um estudo da peça Quase ministro, publicada provavelmente em 1864,
e representada em 1863 num sarau literário e artístico. A peça é uma
comédia curta, em um ato, com catorze cenas, diálogos curtos e com
ação desenvolvida na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de uma sátira
política que tem como objetivo criticar aquelas pessoas que vivem a
bajular alguém que chega ao poder só para tirar algum proveito ou
partido. Além da inovação temática em relação às primeiras peças
Machado de Assis, Quase ministro apresenta um número maior de
personagens, oito, e uma movimentação cênica mais intensa, o que
aproxima a peça das comédias realistas.
O desfile dos bajuladores foi o meio utilizado pelo autor
para criticar as relações “de favor” que sempre permearam o tecido
social brasileiro, desde os primeiros momentos de nossa formação.
Essa comédia, aparentemente despretensiosa, põe em relevo um dos
maiores entraves da vida política brasileira: as relações baseadas no
compadrio e na não distinção entre as esferas da vida pública e da vida
privada. O autor faz uso do palco para discutir uma questão social e
colocar o espectador, ainda que por meio de uma comédia leve, diante
de problemas e vícios presentes na vida e nos costumes de seu tempo.
38. 38 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
O quarto capítulo, “Deuses e homens”, consiste em uma
análise da peça Os deuses de casaca. Este texto, que teve uma
primeira redação em 1864, também foi escrito para ser encenado em
um sarau artístico e literário, mas, por motivos alheios à vontade dos
organizadores do evento, a peça não foi encenada na ocasião e só foi
apresentada ao público no dia 28 de dezembro de 1865, no terceiro
sarau da Arcádia Fluminense. Nessa comédia, o autor, dando mostras
de maior domínio da técnica literária e teatral, cria uma trama em
que os deuses decaídos do Olimpo passam a viver na cidade do Rio
de Janeiro. Além disso, Machado de Assis abandona a linguagem
utilizada nas peças anteriores e coloca os deuses olímpicos para
falar em versos alexandrinos – que seria a forma mais ajustada à
condição divina dos personagens. Seduzidos pela vida mundana, os
deuses buscam ocupações nas estruturas de poder para conservar o
prestígio que sempre tiveram. Ao contrário do que o autor diz sobre
a peça – “Uma crítica anódina, uma sátira inocente, uma observação
mais ou menos picante, tudo no ponto de vista dos deuses, uma ação
simplicíssima, quase nula, travada em curtos diálogos, eis o que é
esta comédia.” –, Os deuses de casaca é uma comédia que tem como
objetivo satirizar o mundo moderno, seus costumes e suas instituições:
a imprensa, a política, o sistema financeiro. A peça é construída com
humor fino, elegante – adequado à situação criada pelo autor – e repleto
de lampejos inteligentes. A ideia de situar deuses da Antiguidade
clássica no mundo moderno talvez tenha sido sugerida a Machado
pelo texto “Os deuses no exílio” (“Les Dieux en exil”), de Heinrich
Heine, publicado na Revue des Deux Mondes em abril de 1853.
Por último, o quinto capítulo analisa a comédia lírica “Uma
ode de Anacreonte”, publicada em 1870, no livro Falenas. Além
dessa peça não ter sido representada, ela também não foi publicada
pelo autor em volume avulso (de teatro), nem em coletânea de textos
dramáticos, mas, sim, num livro de poesias. O poeta dramático, para
compor seu quadro teatral, teve por inspiração a leitura do livro A lírica
de Anacreonte, traduzido por Antônio Feliciano de Castilho. É desta
39. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 39
obra que Machado de Assis retirou a “odezinha” que serviu de motivo
para a sua criação. O enredo da peça se passa em Samos, na Grécia, e
as ações dramáticas giram em torno da personagem Mirto, uma bela
cortesã, que será disputada pelo poeta Cléon e pelo rico comerciante
Lísias. Este, um homem mais velho, experiente, rico, apresenta uma
visão racional do mundo e do amor; aquele, jovem, ingênuo, poeta,
tende a ver o mundo com as lentes coloridas da idealização. Ainda que
a ação de sua peça tenha sido deslocada para outro contexto histórico,
distante no tempo e no espaço, Machado de Assis não deixa de tocar,
de forma sutil, em temas relevantes de sua época: a visão racional da
realidade, as relações com o mundo material, a questão da mulher
cortesã. “Uma Ode de Anacreonte” se apresenta no conjunto da obra
teatral machadiana como uma peça sofisticada, bem elaborada, em
que as cenas se articulam de forma harmoniosa, compondo um quadro
lírico em que a poesia e o teatro se harmonizam.
40. 40 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
41. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 41
CAPÍTULO I
Hoje imitador,
amanhã criador
42. 42 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
43. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 43
I. 1
História
do texto
Machado de Assis dedicou-se ao gênero dramático, como
autor de peças teatrais, ao longo de quase toda a sua carreira literária,
começando em 1860 com a publicação de “Hoje avental, amanhã
luva” no periódico A Marmota, e terminando com a publicação de
“Lição de botânica” em 1906 em Relíquias de casa velha. No início de
sua vida adulta, mais especificamente a partir do ano de 1859, quando
completou com 20 anos de idade, Machado foi crítico teatral, censor
do conservatório dramático, dramaturgo e tradutor de várias peças
francesas.
“Hojeavental,amanhãluva”foioprimeiroexercíciodramático
escrito e publicado por Machado. Trata-se da “imitação” de uma peça
francesa não revelada pelo autor. Conforme explica João Roberto
Faria, em “A comédia refinada de Machado de Assis”, a “imitação”,
na época, era um procedimento comum, significava “apropriar-se do
enredo original e adaptá-lo à paisagem e aos tipos brasileiros”. Nesse
primeiro texto dramático, o autor já incluía referências locais na
comédia, assim como abordava questões de cunho social.
A peça foi publicada no jornal A Marmota, nos dias 20, 23
e 27 de março de 1860, com o seguinte cabeçalho: “Hoje avental,
amanhã luva, comédia em um ato, imitada do francês, por Machado
de Assis”. O texto foi publicado sem mencionar o autor do original –
que permaneceu desconhecido por mais de um século. Não há notícia
de que essa peça tenha sido encenada; e, depois da publicação no
44. 44 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
periódico de Paula Brito, Machado de Assis não voltou a ela, não a
incluiu em nenhum de seus livros.
Enquanto viveu, o escritor publicou os seguintes livros,
contendo peças teatrais suas: Desencantos (1861); Teatro de Machado
de Assis, v. I (1863), com as peças “O caminho da porta” e “O
protocolo”; O Caminho da porta (1863); Quase ministro (volume não
datado, 1864?); Os deuses de casaca (1866); Falenas (1870), com
o poema dramático “Uma ode de Anacreonte”; Tu só, tu, puro amor
(1881); Relíquias de casa velha (1906), com as peças “Não consultes
médico” e “Lição de botânica”.
Depois de 1908, ano da morte do escritor, a primeira coleção
de peças do teatro machadiano foi preparada por Mário deAlencar, em
1910, sob o título Teatro. Esse volume não traz a peça “Hoje avental,
amanhã luva”, e seu organizador, na “Advertência” que antepôs às
peças, sequer a menciona. O texto dessa “imitação” não aparece,
também, no volume Teatro, da editora W. M. Jackson (diversas
edições), nem na edição da Obra completa (em três volumes), da
editora José Aguilar e da Nova Aguilar (diversas reimpressões).
Aprimeira publicação de “Hoje avental, amanhã luva”, depois
da morte de Machado de Assis, ocorreu no livro intitulado Páginas
esquecidas, organizado por Elói Pontes. Embora não traga data de
publicação, Galante de Sousa informa que o livro apareceu em 1939. O
texto dessa edição, segundo ainda o mesmo pesquisador, foi “bastante
alterado” e “não se recomenda” – “foi alterado pelo organizador do
volume”. Muito provavelmente por causa dessa avaliação negativa,
feita de modo bem fundamentado, essa edição não é mencionada por
Jean-Michel Massa, que o incluiu em Dispersos de Machado de Assis
(1865), nem foi levada em conta na edição do Teatro completo de
Machado de Assis preparada por Teresinha Marinho (1982) – que
afirmou: “O texto [...] foi transcrito em Páginas esquecidas (Rio, s.d.,
p. 11-37) com alterações de responsabilidade do autor do volume.
Respeitamos a lição de A Marmota.”
45. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 45
Joel Pontes, no volume Machado de Assis – Teatro, da coleção
Nossos Clássicos da editora Agir, em 1960, publicou um trecho da
primeira cena dessa comédia.
Jean Michel Massa, em Dispersos de Machado de Assis
(1965), identificou o autor do original francês imitado por Machado
de Assis na peça “Hoje avental, amanhã luva”:
Após muita investigação, conseguimos identificar a peça
francesa que serviu de modelo para o escritor brasileiro.
É uma peça de teatro de meados do século XIX, embora o
tema tratado indicasse mais o final do século XVIII. Após
investigações infrutíferas em coleções de teatro do século
XVIII, pesquisamos no Théâtre Illustré Contemporain
(Teatro Ilustrado Contemporâneo), uma vasta coleção de
teatro de meados do século XIX, em 28 volumes.
A peça em questão intitula-se Chasse au Lion (Caça ao
Leão), comédia em um ato, em prosa, de Gustave Vattier e
Emile de Najac, representada pela primeira vez em Paris no
teatro Odeon a 19 de maio de 1852.4
Posteriormente à publicação do crítico francês, o texto dessa
peça aparece no Teatro completo de Machado de Assis (Coleção
Clássicos do Teatro Brasileiro – do Serviço Nacional de Teatro, 1982)
– em que foi cuidadosamente estabelecido por Teresinha Marinho;
no Teatro de Machado de Assis, edição preparada por João Roberto
Faria, 2003; e na Obra completa em quatro volumes, da editora Nova
Aguilar, 2008.
Esses são os registros que importam para a história da
“imitação” que Machado de Assis fez de Chasse au lion, de Gustave
Vattier e Émile de Najac. Sobre essas edições, especialmente as
melhores, observe-se que transcrevem rigorosamente o texto que
apareceemAMarmota,semqualquerobservaçãosobreapossibilidade
4 Tradução livre, nossa.
46. 46 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
de erros tipográficos – e parece haver alguns. Textos impressos na
Tipografia de Paula Brito não são exatamente um exemplo de rigor,
no tocante à revisão.
Quanto aos possíveis erros tipográficos – é incomum que uma
edição impressa de um texto seja completamente isenta de erros –,
poder-se-ia ponderar que desvios da norma linguística servem muitas
vezes para caracterizar a fala de personagens – como poderia ser o
caso do adjetivo “obrigado”, que aparece na forma masculina, em fala
da personagem Rosinha, na cena X. Veja-se ainda este caso, também
na cena X, numa fala de Durval: “Talvez leve a minha amabilidade
a fazer-te uma madrigal.” O gênero feminino atribuído à palavra
“madrigal” não se justificaria, para caracterização de um personagem
de classe social elevada, como é o caso de Durval.
No tocante a gêneros de palavras, ocorrem algumas
idiossincrasias na obra de Machado de Assis: “madrigal” seria uma
delas. Outra, que podemos assinalar é a palavra “coriza”, que o autor
usa no masculino, em crônica da série “A Semana” – essa forma
não foi corrigida por Aurélio Buarque de Holanda, que fez a revisão
crítica da edição de 1953, para a editora W. M. Jackson. O lexicógrafo
e filólogo, entretanto, anotou em rodapé: “Talvez erro de revisão:
coriza é, normalmente, do gênero feminino.” Em edição mais recente,
John Gledson corrigiu “do coriza” para “da coriza”, assinalando em
rodapé a variante do jornal, sem fazer referência à atitude respeitosa
de Aurélio Buarque de Holanda. Muito provavelmente, John Gledson
se sentiu autorizado a fazer a correção devido à alta frequência de
erros tipográficos na imprensa periódica.
47. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 47
I. 2.
O original
e a imitação
Jean-Michel Massa, que estudou a atividade de Machado de
Assis como tradutor, identificou dois polos nessa atividade. O primeiro
polo é o da tradução literal. Citando W. P. Gerritsen, ele afirma que o
trabalho de tradução consiste na “intenção de verter o texto original
tão fielmente quanto o permitem os dados linguísticos e a poética
da língua na qual se traduz.” Tendo estudado as traduções do autor
brasileiro, Massa verifica que ele muitas vezes foi além dos originais
que traduzia, sobrepondo sua voz à do autor traduzido, na tentativa de
igualar ou mesmo superar seu modelo. Chegamos assim ao segundo
polo: “Machado de Assis esquece a regra de ouro do tradutor – o dever
da fidelidade – e faz ouvir sua voz.”
Esse estudioso francês identificou três fases na atividade
tradutora de Machado de Assis: a primeira consiste nas traduções
feitas por encomenda, não é ele quem escolhe o texto a ser traduzido;
a segunda inclui as traduções que ele próprio escolhe fazer – Massa
chama de “afinidades eletivas” a parte do livro que dedica ao estudo
dessas traduções; a terceira, por fim, alcança aquelas traduções em
que o escritor se sobrepõe ao tradutor, tendendo a compor obras
pessoais a partir de originais de outras línguas. Um exemplo máximo
deste último padrão está em “O corvo”, de Edgar Allan Poe, sobre o
qual Massa afirma: “‘O corvo’ deve ser considerado como uma obra
48. 48 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
pessoal de Machado de Assis, que parece ter querido igualar ou talvez
superar o seu modelo.”
Sem se corresponderem exatamente, os três modos de traduzir
equivaleriam à sequência cronológica das fases por que passou o
escritor: as traduções por encomenda – peças de teatro e textos em
prosa – ocorreram principalmente no início de sua carreira; os textos
traduzidos por “afinidades eletivas” – poesias – situam-se entre os
anos de 1857 e 1869; e os textos traduzidos na maturidade, aos quais
se aplica a ideia de que “traduzir é escrever”, situam-se entre 1870 e
1894.
Quando “traduzir é escrever”, o tradutor esquece o dever da
fidelidade ao texto original. Embora as traduções feitas na maturidade
do escritor abriguem uma enorme complexidade – e não sejam o objeto
preferencial aqui; o desejo de liberdade criadora já se manifestava, de
um modo mais simples, em traduções feitas na juventude. Uma das
maneiras que Machado de Assis utilizou para atingir seus objetivos
foi a de lançar mão, muito frequentemente, de “adaptações” ou
“imitações”. Diz Jean-Michel Massa, novamente citando Gerritsen:
“Há adaptação quando ‘o autor condensou, ampliou ou alterou o texto
de seu original com a intenção de lhe dar seu próprio sotaque.’”
Encontra-se neste caso a “imitação” de um texto francês
(Chasse au lion) que resultou na peça teatral “Hoje avental, amanhã
luva.” Já o título traz alterações que denunciam a intenção de fazer
uma “adaptação” ou, para utilizarmos o termo empregado na peça,
“imitação”.
Uma avaliação da distância entre o original e a “imitação”
depende, evidentemente, do conhecimento do texto primeiro. No caso
de “Hoje avental, amanhã luva”, o original só se tornou conhecido
graças ao trabalho do pesquisador Jean-Michel Massa, que transcreveu
a peça em “Dispersos de Machado de Assis”, em 1965 – ocasião em
que revelou a identidade dos autores e do texto imitado. Para dar a
conhecer o trabalho de “adaptação”, o pesquisador, nas notas ao texto
da peça, realizou um cotejo com o original, assinalando acréscimos e
49. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 49
supressões feitas pelo adaptador. O balanço final desse cotejo, Massa
o apresenta em A juventude de Machado de Assis, obra publicada em
1971: “A ação [da peça] foi transposta para o Brasil, e Machado de
Assis, por meio de diversas referências bastante precisas, adaptou o
assunto aos hábitos e costumes do país [...].”
Um estudo do cotejo feito por Jean-Michel Massa foi
realizado por Maria Augusta H. W. Ribeiro, no “Anexo I” à tese
Machado de Assis, um teatro de figuras controversas, sob o título
“Estudo comparativo entre o texto Hoje Avental, Amanhã Luva
de Machado de Assis e o original francês Chasse au lion de MM.
Gustave de Vattier e Émile de Najac.” Ela estuda e comenta, com base
apenas nas notas de Massa (por não conhecer o original francês – ela
o declara), as supressões e os acréscimos feitos por Machado de Assis.
Faremos a seguir o cotejo o original e a “imitação”, numa tentativa de
aprofundar as reflexões e interpretar a significação das supressões, e
especialmente dos acréscimos, feitas pelo “imitador”.
A imitação de Machado de Assis, como o original francês,
é uma comédia em um ato, com três personagens, dois homens e
uma mulher. Não só o título foi modificado – Chasse au lion, em
francês, e “Hoje avental, amanhã luva”, em português; os nomes
dos personagens, também, foram alterados – de Rouvroy, François
e Florette, na peça francesa, e Durval, Bento e Rosinha, no texto
machadiano. Tudo isso já é parte do processo de aclimatação da peça
ao ambiente carioca.
A imitação machadiana indica o local e a época do ano em
que ocorre a ação da peça: “Rio de Janeiro – Carnaval de 1859.” Jean-
Michel Massa chama a atenção para o fato de que essa indicação é um
acréscimo de Machado de Assis: “A indicação do lugar da ação e a
data são do escritor brasileiro.”5
5 MASSA, Jean-Michel, 1965, p. 502. “L’indication du lieu de l’action et la
date sont de l’écrivain brésilien.” (Tradução nossa)
50. 50 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
O texto original tem doze cenas; o brasileiro, onze. A cena
se caracteriza pela permanência, no palco, do mesmo conjunto de
personagens – saídas e entradas de personagens determinam as
mudanças de cena. O número menor de cenas no texto em português
ocorre porque Machado de Assis fundiu as cenas IV (monólogo de
Florette) e V do original (diálogo entre François e Florette). A cena IV
se restringe a um monólogo breve de Florette. Na imitação, depois do
monólogo de Rosinha, o personagem Bento entra na sala, e, a partir
daí, há diálogo entre os dois; não há divisão de cenas entre o monólogo
e o diálogo. No monólogo inicial da cena IV, do texto machadiano,
Rosinha explicita seu desejo de vingança com relação a Durval,
porque ele tentara seduzi-la no passado; além disso, ela aponta os
preconceitos dele com relação a ela, por sua condição social inferior à
dele. É nesse monólogo que aparecem as palavras “avental” e “luva”,
que subiram ao título da obra como signos de posições sociais.
A estrutura dramática, relativamente simples, tem, em geral,
apenas um ou dois personagens em cena ao mesmo tempo. A única
exceção é a cena V (cena VI no original), em que os três personagens
se encontram todos no palco. Este ponto da comédia marca uma virada
no curso das ações: nas cenas precedentes a vingança de Rosinha,
com relação a Durval, é planejada por ela, com a ajuda de Bento; nas
cenas subsequentes a vingança é executada. Portanto, a reunião dos
três personagens nos permite dividir a comédia em duas partes, que
correspondem ao planejamento e à execução da vingança.
O texto em português não segue, palavra a palavra, o original.
Sobre esse aspecto, afirmou Helena Tornquist, em As novidades
velhas: “A tradução não se limitou à transposição das falas para nossa
língua nem à busca de palavras e expressões correspondentes [...].”
Se as palavras ditas não são as mesmas, as ações o são, ao longo de
toda a peça. Toda a arquitetura dramática vem do texto francês. A
contribuição machadiana ocorre no nível dos detalhes, que introduzem
na obra elementos locais e elementos caracterizadores da arte literária
de Machado de Assis, que tem nesta peça, talvez, o seu primeiro
51. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 51
momento em obra de certa extensão. Além de apresentar acréscimos e
substituições (ou adaptações), a imitação suprimiu trechos de diálogos
existentes no original. As supressões foram assinaladas por Jean-
Michel Massa, em sua transcrição da peça em Dispersos de Machado
de Assis. Os acréscimos e adaptações serão examinados a seguir.
Os elementos introduzidos, que servem para integrar a ação
da comédia à cidade do Rio de Janeiro, comportam duas dimensões:
os dados geográficos e os dados socioculturais.
A primeira referência geográfica ocorre já na cena I, com a
chegada de Durval à casa de Sofia, depois de uma ausência de dois
anos do Rio de Janeiro, na seguinte passagem:
Rosinha
Tenciona ficar aqui no Rio?
Durval
(sentando-se)
Como o Corcovado, enraizado como ele. Já me doíam
saudades desta boa cidade. A roça, não há coisa pior!
A resposta de Durval à pergunta de Rosinha é clara e de
grande impacto expressivo: ficar no Rio como o Corcovado é fixar-
se aí, sem a menor possibilidade de futuro afastamento. A imagem
do Corcovado é como que identificada ao todo da cidade – funciona
metonimicamente. O acréscimo “enraizado como ele” é reminiscência
do original, em que De Rouvroy diz, respondendo à pergunta de
Florette (“Resterez-vous longtemps à Paris?” – “Ficareis por muito
tempo em Paris”?): “J’y prends racine.” (“Fincarei raízes aqui.” –
traduções livres, nossas). A réplica machadiana, pelo elemento da
paisagem física que menciona, tem força cômica – e o diálogo entre os
personagens estabelece comunicação viva com o espectador, uma vez
que o dado evocado é necessariamente parte da experiência comum a
todos os que vivem na cidade do Rio de Janeiro.
52. 52 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
Outra referência à geografia da cidade ocorre no início da
cena X, quando Rosinha se vê desimpedida para executar o golpe final
em Durval:
Rosinha
(consigo)
Muito bem! Lá foi ela visitar a sua amiga no Botafogo.
Estou completamente livre.
Do ponto de vista da ação dramática, a referência a Botafogo
funciona melhor do que a referência do texto original a uma saída da
cidade (“Grâce à mon adresse, Madame est partie pour la campagne;
j’ai le champ libre; frappons les grands coups.” – “Graças à minha
astúcia, Madame partiu para o interior; o campo está livre; vamos ao
golpe.” – tradução livre), que exigiria um aparato preparatório maior
do que a simples visita a uma amiga. É mais verossímil, no contexto
de uma ação que se passa à noite, e em poucas horas.
Mais importantes para a integração da ação à vida carioca no
texto “adaptado” por Machado de Assis são os aspectos socioculturais
inseridos nos diálogos.
Retomando a cena I, em trecho já parcialmente citado, temos
a seguinte afirmativa do personagem Durval sobre o tempo que ele
passou longe da cidade – ausente das atrações da capital do Império:
Rosinha
Tenciona ficar aqui no Rio?
Durval
(sentando-se)
Como o Corcovado, enraizado como ele. Já me doíam
saudades desta boa cidade. A roça, não há coisa pior!
Passei lá dois anos bem insípidos – em uma vida uniforme
e matemática como um ponteiro de relógio: jogava gamão,
colhia café e plantava batatas. Nem teatro lírico, nem rua
do Ouvidor, nem Petalógica! Solidão e mais nada. Mas,
viva o amor! Um dia concebi o projeto de me safar e aqui
estou. Sou agora a borboleta, deixei a crisálida, e aqui me
vou em busca de vergéis.
53. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 53
Ao falar sobre o período em que esteve na roça, Durval diz
ter assumido um estilo de vida bem monótono, mecânico e sem graça;
sem nenhuma distração cultural que pudesse aliviá-lo do tédio da
vida rotineira, do dia a dia. A primeira queixa do personagem recai
sobre a impossibilidade de frequentar o teatro e não poder assistir
a uma apresentação do teatro lírico. O depoimento de Durval diz
muito sobre o contexto cultural durante o Segundo Reinado no Brasil
e sobre o hábito de frequentar teatros. Vários autores já assinalaram
que nesse período o teatro viveu um momento de grande esplendor em
terras brasileiras.
Segundo Helena Tornquist (na obra já citada):
Frequentar teatros e ir à ópera é um novo hábito numa
sociedade que se quer cosmopolita. Em 1859, quatro
teatros estavam em atividade: o São Pedro, o Ginásio, o
São Januário e o Lírico Fluminense, este último dedicado à
ópera, a nova paixão que tomava conta de todos.
O teatro tornou-se um importante centro de convivência na
época. Em vários romances e contos de Machado de Assis e de outros
escritores pode-se observar que as personagens tinham por hábito
frequentar teatros e óperas. No tempo em que se passa a ação da peça
(“Carnaval de 1859”), a vida teatral no Rio de Janeiro era tão intensa
que havia rivalidade entre teatros: o Ginásio Dramático, que iniciou
suas atividades em 12 de abril de 1855 e que se dedicava a peças
modernas e realistas, e o São Pedro de Alcântara, em atividade desde
1839, que representava o teatro romântico do passado – com repertório
da preferência de João Caetano, composto por tragédias neoclássicas,
dramas românticos e melodramas. Na passagem citada, o personagem
está inserido em um contexto rico, do ponto de vista da vida teatral,
contexto que certamente conhecido pelos espectadores presentes no
teatro (eles próprios estavam lá!), realizando certa integração do que
se passa no palco com a vida da plateia.
54. 54 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
Um ponto da cidade do Rio de Janeiro presente na fala de
Durval, que é ao mesmo tempo uma referência geográfica e um centro
caracterizador da vida elegante da cidade, é a rua do Ouvidor: nela
se localizava boa parte das redações dos jornais cariocas; nela se
encontravam artistas, jornalistas, políticos e pessoas interessadas por
notícias. Além disso, essa rua era um centro comercial de prestígio,
com suas lojas, cafés e livrarias. Esse espaço foi cenário de diversas
narrativasdeMachadodeAssisedeoutrosautoresbrasileiros.Joaquim
Manuel de Macedo historiou-a, dedicou-lhe todo um livro, Memórias
da rua do Ouvidor, referindo-se a ela como “a atual rainha da moda,
da elegância e do luxo”. Seu livro começa com este parágrafo: “A Rua
do Ouvidor, a mais passeada e concorrida, e mais leviana, indiscreta,
bisbilhoteira, esbanjadora, fútil, noveleira, poliglota e enciclopédica
de todas as ruas da cidade do Rio de Janeiro, fala, ocupa-se de tudo
[...]”.
A rua do Ouvidor, no século XIX, não só era parte viva da
vida social na corte: era uma espécie síntese do que havia de mais
cosmopolita neste país tropical. Com o teatro e com sua rua mais
elegante, a cidade do Rio de Janeiro tomava o rumo da civilização.
Esses signos introduzidos na adaptação desempenhavam, portanto,
uma função – aquela que Machado de Assis atribuía à arte teatral
em “A comédia moderna”, de 1856, primeiro texto seu sobre esse
assunto: “[o teatro era] o verdadeiro lugar de – distração e ensino; – o
verdadeiro meio de civilizar a sociedade e os povos.”
Além da alusão à vida nos teatros e na rua do Ouvidor (onde
tudo acontecia ao vivo, onde as pessoas se davam em espetáculo, sem
ensaio, no palco do mundo), Durval menciona ainda a “Petalógica” –
“sociedade lítero-humorista fundada por Paula Brito”, nas palavras
de Lúcia Miguel Pereira (na obra Machado de Assis: estudo crítico
e biográfico). Frequentavam-na grupos de intelectuais, jornalistas,
políticos, artistas, pessoas das mais diversas ocupações, para discutir
os assuntos do dia na vida da cidade do Rio de Janeiro. Em crônica
publicada no Diário do Rio de Janeiro em 3 de janeiro de 1865, ao
55. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 55
comentar o livro Lembrança, de José Antônio, Machado de Assis fez
a seguinte declaração:
Este livro é uma recordação, – é a recordação da Petalógica
dos primeiros tempos, a Petalógica de Paula Brito, – o café
Procópio de certa época, – onde ia toda a gente, os políticos,
os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes, os
simples amadores, amigos e curiosos, – onde se conversava
de tudo, – desde a retirada de um ministério até à pirueta
da dançarina da moda; onde se discutia tudo, desde o dó do
peito do Tamberlick até os discursos do marquês de Paraná,
verdadeiro campo neutro onde o estreante das letras se
encontrava com o conselheiro, onde o cantor italiano
dialogava com o ex-ministro.
Ao mencionar a Petalógica, esta fala de Durval acrescenta
mais um item à caracterização local da ação adaptada de um texto
francês. Para além disso, a lembrança da Petalógica trazia um
dado intimamente vinculado à biografia de Machado de Assis:
“Lá conheceu ele muita gente interessante, travou relações que o
ajudaram.” – escreveu Lúcia Miguel Pereira na obra já mencionada.
Machado de Assis, ao longo dos anos de 1855, 1856 e 1857 – os três
primeiros anos de sua atividade literária –, teve seus textos impressos
quase exclusivamente nas páginas do jornal de Paula Brito (Marmota
Fluminense e A Marmota).
Sobre a adaptação da ação teatral à vida carioca, nesse trecho,
Jean-Michel Massa, em Dispersos de Machado de Assis, escreveu:
Todas as alusões brasileiras são obviamente feitas por
Machado de Assis. Observa-se aqui a alusão à Petalógica,
um círculo literário que ele frequentava. A profissão de fé
antibucólica, que ocupa quinze linhas no original francês, é
brevemente resumida pelo adaptador.6
6 Tradução livre, nossa.
56. 56 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
Outro dado da vida cultural carioca que surge na comédia é
o Jornal do Comércio. Quando o criado de Durval, Bento, entra em
cena, chamado por seu patrão, ele traz consigo um exemplar do jornal:
Bento
(entrando com um jornal)
Pronto.
Durval
Ainda agora! Tens um péssimo defeito para boleeiro, é não
ouvir.
Bento
Eu estava embebido com a interessante leitura do Jornal
do Comércio: ei-lo. Muito mudadas estão estas coisas por
aqui! Não faz uma ideia. E a política? Esperam-se coisas
terríveis do parlamento.
Em francês, o boleeiro entra com um livro na mão: Crispin,
rival de son maître (Crispim, rival de seu senhor – tradução livre) –
título não de todo desprovido de sentido (na peça francesa), conforme
se verá. Na adaptação machadiana, a presença do jornal é um avanço:
mais que o livro, é democrático o jornal. “O jornal é a verdadeira
forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em
viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal,
altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a
frescura das ideias e o fogo das convicções.” – escreveu Machado de
Assis num de seus textos da juventude (“O jornal e o livro”).
A substituição do livro pelo jornal é relevante. O ponto de
vista defendido por Machado de Assis explica o fato de o jornal
aparecer nas mãos do personagem que pertence à classe subalterna.
Sobre a diferença entre o jornal e o livro, escreveu o autor no artigo já
citado:
O livro era um progresso; preenchia as condições do
pensamento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma
coisa; não era ainda a tribuna comum, aberta à família
57. Nilton de Paiva Pinto - Teatro de Machado de Assis 57
universal, aparecendo sempre com o sol e sendo como ele o
centro de um sistema planetário. A forma que correspondia
a estas necessidades, a mesa popular para a distribuição do
pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito
moderno: é o jornal.
Essa interpretação, de abrangência histórica e sociológica,
contradiz a afirmativa de Maria Augusta H. W. Ribeiro de que a
presença do jornal nas mãos de um boleeiro – personagem de classe
social inferior – seria inverossímil; para ela “esta atitude estaria mais
condizente com a de um político, um estudante ou um intelectual,
mas nunca um boleeiro daquela época.” O fato do personagem ser um
boleeiro não torna a cena inverossímil, pois, além de saber ler, Bento
é astuto, atento, um personagem, de certa forma, ligado à tradição
cômica do teatro ocidental – o criado esperto.
A fala de Bento revela que ele está atento à política e às
decisões do parlamento. Nisso ele reflete o autor da peça, que sempre
se interessou por política e, a partir dessa época, exerceu, para o Diário
do Rio de Janeiro, por algum tempo, a função de cronista parlamentar
no senado do Império.
Na cena IV, em que Rosinha alicia Bento para ajudá-la na
trama com que pretende enganar Durval, o Jornal do Comércio
reaparece. Agora, a referência é feita à seção “Gazetilha”, em que
figuram as notícias miúdas e mais variadas do dia a dia da cidade. A
menção a essa seção do jornal casa-se perfeitamente com a ação – o
planejamento de uma burla – que se passa na cena.
Na cena seguinte (V), em que todos os três personagens se
encontram, Durval ordena que Bento vá buscar a carruagem para o
portão da casa. Antes de sair, Bento demonstra preocupação com o
jornal, que acaba descobrindo estar em seu bolso. Nas duas cenas do
original francês correspondentes a essas (no original V e VI), não há
qualquer uso do livro lido pelo criado de Rouvroy. O livro só será
retomado na cena final.
58. 58 Teatro de Machado de Assis - Nilton de Paiva Pinto
Entre os elementos introduzidos por Machado de Assis
na adaptação de Chasse au lion para a sua cidade, há ainda quatro
referências na cena VI: a menção ao Desmarais, à estrada de ferro, ao
correio da corte e à chácara do Souto. Sobre Desmarais, escreveu Jean-
Michel Massa (em Dispersos da Machado de Assis): “Desmarais era
um perfumista bem conhecido. Desmarais e Gérard eram, em 1844,
Cabeleireiros da Corte.” E sobre o Souto, anotou: “Era um banqueiro
famoso na época.”7
Quanto ao Desmarais, a personagem Rosinha, na tentativa de
emplacar seu golpe sobre Durval, atualiza a ação dramática ao citar
nominalmente a perfumaria de muito prestígio da época:
Rosinha
Ilusão! Tudo isso é tabuleta do Desmarais; aquela cabeça
passa pelas minhas mãos. É uma beleza de pó de arroz:
mais nada.
A fala de Rosinha busca desmerecer a beleza de Sofia de Melo
– sua patroa e affair de Durval –, com o objetivo de convencer este
último de que a jovialidade de sua amada não passava de um artifício
para enganá-lo. Ao citar o Desmarais, ela faz uso de um recurso
metonímico para dizer que a beleza de Sofia não é natural, mas, sim,
artificial, comprada.
A perfumaria Desmarais foi uma referência no setor de beleza
na cidade do Rio de Janeiro, no século XIX. Em Memórias da rua do
ouvidor, Joaquim Manuel de Macedo dedica um capítulo ao famoso
estabelecimento:
A loja de perfumarias Desmarais teve no seu gênero a
glória e a primazia de que gozou a do Wallerstein; exerceu
governo e fez o encanto do nariz, dos cabelos e das barbas
7 Traduções livres, nossa.